Retrospecto de perdas e aprendizado
Entre 1989 e meados da década seguinte, a praga assim apelidada em função da aparência deformada que causava nas plantas afetadas dizimou lavouras no Sul da Bahia, que era o principal polo cacaueiro do país. O fungo Moniliophthora perniciosa, originário da Amazônia e causador da doença, se alastrou com rapidez assustadora, e foram necessários anos para frear o surto. Nesse meio tempo, a produção nacional, que chegou a ser a segunda maior do mundo, girando em torno de 400 mil toneladas, caiu no início do século seguinte para 100 mil. De exportador, o país passou a importar para conseguir atender à demanda interna.
O endividamento dos fazendeiros decretou o desemprego em massa de trabalhadores, sendo que boa parte dos agricultores era de pequeno e médio porte. A economia de cidades inteiras, que dependia das safras recordes, definhou aos poucos, causando ondas migratórias e fechamento de comércios locais. O impacto social, financeiro e produtivo somou-se à tragédia ambiental, já que o cacau era cultivado à sombra de exemplares remanescentes da mata atlântica da região. O desafio de preservar o bioma agigantou-se.
A compreensão dos mecanismos de atuação do fungo, bem como técnicas de monitoramento e métodos de manejo específicos, possibilitou uma longa e árdua recuperação. Em 2020, o Brasil fechou a produção em 250 mil toneladas, ocupando o sétimo lugar no ranking mundial. A Bahia foi destronada pelo Pará na liderança nacional, mas preserva o legado e tradição de uma época de opulência e fartura proporcionados pelas décadas de sucesso do cultivo, que influenciaram artistas, políticos, empresários, intelectuais e historiadores.
A natureza peculiar do cacaueiro, árvore que demora anos para frutificar, por muito tempo dificultou as análises técnicas que hoje tornam possível o manejo adequado dos ramos infectados. O foco é no combate preventivo, com aplicação de hormônios que aumentam a resistência dos frutos, e sementes geneticamente modificadas, menos suscetíveis à praga. O cuidado se dá antes mesmo do plantio, para que o pé de cacau seja o mais forte possível, além do olhar atento dos produtores.
Novas perspectivas e registros
No auge da vassoura de bruxa, o Brasil ainda lutava contra mazelas de outra natureza, tais como inflação alta, sobressaltos políticos pós-redemocratização e instabilidade internacional. A queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética eram acontecimentos recentes, redesenhando o arranjo de forças e potências pela primeira vez em gerações. Sem o imediatismo e agilidade da internet, redes sociais e canais jornalísticos em tempo integral, o suprassumo da tecnologia eram itens distantes da população em geral, como aparelhos de fax e telefones celulares. O noticiário dos canais abertos não dava conta de transmitir aos brasileiros a gravidade do que acontecia na Bahia.
Nesse sentido, a novela Renascer, de Benedito Ruy Barbosa, foi um divisor de águas. Além de artisticamente muito elogiada, foi o primeiro contato mais profundo que os cidadãos tiveram com a calamidade e seus desdobramentos. A trama, que se passava na região das fazendas baianas, acompanhava a saga de José Inocêncio, personagem ambicioso que construía um império digno dos antigos barões do cacau.
Por meio de sua trajetória, o autor apresentou o retrato de um momento no qual o combate à vassoura de bruxa já entrava numa fase vitoriosa. Mesmo assim, incontáveis diálogos faziam referência explícita às perdas acarretadas pela praga e os efeitos da crise como um todo. O ano era 1993, e a história trazia experiências que Ruy Barbosa incorporou aos personagens após viajar longamente pelas áreas afetadas.
Sucesso de crítica e audiência, o folhetim fomentou o turismo na região e atraiu o interesse de uma nova geração pelo legado do cacau, que a exemplo de outros ciclos agrícolas brasileiros do passado, deixou marcas culturais indeléveis mesmo após o seu apogeu. Isso ajudou a alavancar a recuperação das lavouras, ancoradas no melhor entendimento de combate a doenças e pragas, além de desafios contemporâneos que vieram com a realidade pós-vassoura de bruxa, como sustentabilidade e tecnologias mais avançadas no processamento dos frutos.
A trama ganhou uma segunda versão, numa escala temporal diferente, o abalo no cultivo do cacau será retratado como uma fase superada, mas ainda determinante no destino dos personagens e catalisadora de novas práticas que surgiram nesses 31 anos, no cacau em particular e no agronegócio brasileiro como um todo.
Com a promessa de uma caracterização atualizada e que assimile as mudanças ocorridas desde 1993, é salutar que obras de influência busquem retratar um universo importante na vida de tantos brasileiros, numa época em que a troca de informações e ideias é instantânea, de modo a aproximar a figura do produtor rural através de temas e anseios que são atemporais e comuns a todos.
Confira aqui o texto que o Portal SNA publicou sobre o legado de ciclos agrícolas do passado em suas respectivas regiões https://sna.agr.br/o-legado-turistico-e-economico-dos-ciclos-agricolas/
Marcelo Sá – jornalista/editor (MTb 13.9290)