Novo modelo de reforma agrária e seus contrassensos  

Por Marcelo Sá
Equipe SNA

O governo federal anunciou recentemente a intenção de promover um novo modelo de reforma agrária. Partindo de um levantamento encomendado ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), em parceria com os estados, a intenção é mapear áreas para montar o que foi batizado de “prateleira de terras improdutivas”, visando atender à demanda dos movimentos sociais que, desde o início da atual gestão, em janeiro, alavancaram o número de invasões e conflito. Em meio ao desgaste político gerado por esse aumento, a alternativa apresentada como forma de pacificação também vem sendo criticada por especialistas.

Em primeiro lugar, a escassez de terras improdutivas com potencial agrícola é um grande obstáculo. Se nos anos 90 as famílias eram assentadas em lotes declarados improdutivos ou desapropriados, hoje isso ocorre em imóveis comprados pela União, o que elevou bastante o custo do processo. Uma vez instaladas, as pessoas precisam de acompanhamento e assessoria, o que demanda novos aportes, para uma contrapartida tímida da renda agrícola que cada assentamento conseguir produzir. Novas áreas no eixo Centro-Sul praticamente não existem mais, o que inclui as terras devolutas, realocando trabalhadores assentados para biomas frágeis e de pouquíssima vocação para a agricultura, como a Amazônia e a Caatinga nordestina. Isso sem mencionar a dificuldade de acesso e as restrições das leis ambientais.

O resultado perceptível é que muitas dessas famílias vivem em condições precárias, o que faz com que haja aumento nas desistências, pois o poder público não consegue, pois mais que se esforce, levar a esses locais a competitividade dos principais polos produtores. Em recente audiência da CPI sobre o MST na Câmara Federal, o ex-presidente do Incra, Xico Graziano, apresentou estatísticas alarmantes. Segundo ele, a taxa de evasão média nos assentamentos está em torno de 30%, podendo, em locais mais distantes, alcançar 50% e até 70%.

Em 2005, o custo médio para assentar cada família de sem-terra no país estava em R$ 65 mil, o que incluía, além do preço da terra, os gastos com servidores e a implantação do projeto. Em 2018, o valor somente de aquisição da terra chegou a R$ 108,9 mil, o que, com correção, representa hoje R$ 145 mil. Somando-se os custos operacionais de infraestrutura, implantação e gerenciamento, o custo total de cada assentado está atualmente em R$ 217 mil. Daria para pagar um salário mínimo para cada família assentada por 164 meses, ou 13,7 anos. Em comparação, a renda agrícola líquida estimada nos assentamentos está em R$ 3.455 por ano, ou R$ 288 por mês.

O caminho, segundo Graziano, é ajudar quem naturalmente já ocupa determinadas terras há bastante tempo, ou então criar programas de fomento para técnicos agrícolas ou filhos desempregados de produtores, que já possuem a qualificação necessária. O governo pode incentivar o aumento de um determinado cultivo com a ajuda dessa mão de obra ociosa, a exemplo do que fizeram outros países do chamado cinturão tropical, como Malásia e Indonésia. Assim, as pessoas teriam um horizonte claro de onde trabalhar, o que produzir e por quanto tempo.

Para Geraldo Melo Filho, que presidiu o Incra no governo Bolsonaro, a situação se agrava porque, nos rincões mais distantes, a falta de infraestrutura básica desencoraja novas famílias, que temem não encontrar hospitais, escolas e saneamento. Até mesmo o desmatamento pode crescer, já que quem aceita ir, por exemplo, para o Norte, busca onde produzir e construir estruturas de apoio por conta própria. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), a reforma agrária contribuiu com 25% a 30% do desmatamento da Amazônia entre 2003 e 2014.

Ele alerta também para o que considera um erro da gestão atual, que foi a revogação da Memorando 01 do Incra de 2019, que estabelecia que, para iniciar qualquer processo de desapropriação, seria necessário primeiro apontar a fonte do recurso existente. Essa mudança pode, inclusive, levar ao descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal. Sem mencionar as dívidas que se arrastam de uma administração para outra.O governo de Jair Bolsonaro gastou R$ 6,2 bilhões para pagar precatórios de indenização de terras da reforma agrária “pendurados” por governos anteriores.

Essas reflexões apontam que o mais sensato é investir na malha de suporte das famílias que já estão assentadas há anos, em terras com condições de trabalho, invertendo a lógica funesta de começar o processo com as invasões ou desapropriações sem estudo. É necessário consolidar, mediante planejamento prévio e desenvolvimento. Investir em titulações, mão de obra qualificada e infraestrutura adequada.

Como comparação, ao longo dos últimos 40 anos, o Brasil assentou quase 1 milhão de famílias pela reforma agrária numa área de 87 milhões de hectares. É mais do que todo o espaço ocupado pela safra de grãos brasileira, atualmente em 64 milhões de hectares.

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