O governo federal decidiu reunir e analisar as diferentes propostas sobre pedidos de recuperação judicial (RJ) de produtores rurais pessoas físicas com o objetivo de criar regras específicas para a categoria. A iniciativa foi motivada pelas diversas divergências entre agricultores e tradings a respeito do assunto.
O modelo que está sendo elaborado é o da “pré-qualificação”. Com ele, para ter direito à RJ, o produtor deverá apresentar informações contábeis aos fornecedores de crédito ou insumos no momento da contratação.
Apenas as dívidas amparadas por esses dados seriam passíveis de renegociação. Quaisquer outras dívidas contraídas antes ou depois que não estiverem nessas prestações de contas, portanto, não poderiam ser incluídas no pedido de recuperação.
A ideia do modelo é “regular o balcão aberto” existente hoje na relação de agricultores com financiadores privados e melhorar o ambiente geral de crédito rural, inclusive nos bancos.
Com isso, poderá haver maior transparência sobre a situação contábil dos agricultores para análise de risco por parte dos credores. No médio prazo, afirmam fontes do setor e do governo, a medida deverá ajudar a reduzir os custos dos empréstimos.
Uma das alternativas em estudo é estabelecer um prazo de dois anos para que os produtores possam se adequar e começar a fornecer a tradings, cooperativas e revendas de insumos as informações previstas sobre suas contas.
Registro
De acordo com o advogado e professor Frederico Price Grechi, diretor jurídico da Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), o produtor rural pessoa física, no exercício regular da sua atividade agrícola, terá direito à RJ após obter a sua inscrição no Registro Mercantil (Junta Comercial) competente.
“A partir daí, as suas obrigações anteriores ou posteriores à inscrição como empresário rural, são alcançadas pelo processo de recuperação judicial, independentemente da apresentação de informações contábeis, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça (REsp. nº 1.800.032-MT) ao interpretar os artigos 970 e 971 do Código Civil e o artigo 48 da Lei nº 11.101/2005”, explicou Grechi.
Impactos
Para ele, os impactos sociais e econômicos dessa nova exigência para ter acesso à RJ baseada no modelo de “pré-qualificação” precisam ser avaliados de forma adequada.
“Se após os debates necessários houver efetivamente um ponto de equilíbrio entre os interesses dos produtores rurais pessoas físicas e as tradings/instituições financeiras, essa nova regra deve valer somente para o futuro, preservando as situações jurídicas e econômicas já constituídas na vigência da legislação atual”, ponderou o advogado.
Segundo analistas, o governo teme reflexos negativos para os financiamentos rurais de uma possível demanda mais forte por RJs. Outra preocupação é a inclusão de dívidas do crédito oficial em pedidos de recuperação, com gastos ao Tesouro.
Inclusão da CPR
Apesar dos avanços nas discussões, a falta de consenso sobre a inclusão de Cédulas de Produto Rural (CPR) em uma recuperação judicial ainda trava as negociações.
Produtores defendem a inclusão dos títulos e a definição de critérios para sua renegociação. Uma das possibilidades é parcelar a entrega da produção atrelada às CPRs em várias safras. Tradings e agroindústrias financiadoras, entretanto, não aceitam.
Fontes do Planalto afirmaram que, com a exclusão na MP do Agro, do artigo que proibia a inclusão de CPRs, o Congresso passou uma mensagem ruim para o ambiente de crédito rural no País, e que a CPR precisa de uma “blindagem” para melhorar a transparência e a confiança junto aos financiadores da safra brasileira. O assunto divide especialistas.
A ministra da Agricultura Tereza Cristina, que disse ao Valor que concorda com a “proteção” das CPRs nos processos de RJ e que o tema só foi excluído para não atrapalhar a tramitação da MP, defendeu um debate aprofundado e, separadamente, uma “construção” equilibrada sobre o assunto.
“É importantíssimo para dar segurança, a fim de que o Brasil possa trazer recursos de fora para ajudar a financiar a agricultura. Mas tem que ter segurança jurídica, caso contrário o investidor acaba não vindo”.
Substitutivo
Desde setembro, os ministérios da Economia e da Agricultura buscam mediar a criação de um texto para normatizar a RJ de produtores rurais pessoas físicas. Entidades do setor agropecuário, tradings, cooperativas e juristas participam do grupo de trabalho.
O objetivo é apresentar a proposta como um substitutivo ao projeto de lei 6279/2013 pelo relator e presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), Alceu Moreira (MDB/RS). A ministra Tereza Cristina disse que pedirá ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM/RJ), que a proposta tramite em regime de urgência quando for apresentada.
Uma vez aprovado, o texto deverá se tornar estatuto de recuperação judicial rural e suprir um “vácuo legislativo” que levou a entendimentos divergentes sobre a norma em vigor, que só trata de pessoa jurídica, e a disputas bilionárias na Justiça.
A decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no fim de 2019, que permitiu à empresa do agricultor de Mato Grosso José Pupin a incluir débitos contraídos como pessoa física na RJ, mesmo sem cumprir o prazo de dois anos de inscrição em junta comercial, deu mais urgência ao tema.
Oportunismo
O deputado Alceu Moreira defende o modelo que está sendo costurado. Ele afirmou que as regras dificultariam o oportunismo de uma minoria que atrapalha a imagem de todo o setor. “O produtor se habilita para não fazer operação surpresa e acaba com a picaretagem”, afirmou o deputado ao Valor. “Se nós queremos a RJ, ela não pode ser instrumento para oportunistas”.
O deputado cita o exemplo de quem se endivida e usa os recursos para comprar novas áreas. “Não pagou os fornecedores, não pagou o empréstimo, mas logo depois começa a comprar a terra do vizinho. Isso estabelece descrédito, grau de risco. É ruim”.
Segundo Moreira, o projeto vai impedir essas situações. “Na hora que o produtor comprar ou tomar o crédito, vai assumir responsabilidades que darão direito à RJ. As pré-condições qualificarão a saúde do crédito e não permitirão vigarices”.
Estatísticas
O número de pedidos de recuperação judicial cresceu nos últimos anos no Brasil. Em 2019, foram 58 pedidos, contra 61 em 2018 e 16 em 2017. Em 60% dos casos do ano passado, as tradings conseguiram recuperar os produtos negociados por CPR, mas com custo judicial e logístico. É incerto o valor total dos pedidos de renegociações dos produtores. Considerando apenas seis dos processos mais conhecidos, o montante atinge R$ 5 bilhões.
Fonte: Valor Econômico
Equipe SNA