Nas últimas décadas, todas as leis brasileiras que tinham como objetivo resolver o problema da regularização fundiária na Amazônia falharam. Como consequência, nossas florestas, em especial a Amazônica, seguem sendo alvo de ocupações ilegais para fins de grilagem, sem que a solução para os ocupantes antigos de boa-fé da região seja concretizada. O Brasil insiste em atacar os efeitos, e não as causas desse problema.
Invasores de áreas públicas, com objetivo meramente especulativo, recebem periodicamente o benefício de alguma alteração na lei que torna legal o que era crime. Alterações como essa foram feitas em praticamente todos os governos, a mais recente foi aprovada no governo de Michel Temer (Lei 13.465/2017). Se, por um lado, o governo se sente perdido diante de um passivo fundiário que só aumenta a cada ano, por outro, de nada adianta premiar criminosos.
Outro impacto dessas mudanças no marco legal da regularização fundiária é o contínuo desrespeito ao Código Florestal, aprovado em 2012 após um dos maiores processos participativos do Congresso Nacional desde a Constituinte de 1987-1988. Fruto de muito diálogo, a Lei 12.651 estabeleceu a data de 31 de julho de 2008 como linha de corte para consolidar e regularizar áreas que haviam sido foco de desmatamento ilegal. A linha foi traçada e agora precisamos implementar a lei. Rever o prazo de ocupações ilegais significa também rever o marco temporal do desmatamento e regularizá-lo, já que a derrubada ilegal da floresta faz parte desse crime.
Uma causa do problema de regularização fundiária, que tem sido negligenciada por anos, é a corrupção em cartórios. Em conivência com os invasores, eles validam uma regularização forjada com base em documentos de fachada. Ações de combate à corrupção em cartórios da Amazônia, como, por exemplo, a digitalização, nunca foram adiante.
Para solucionar a regularização fundiária é imprescindível que os órgãos competentes, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e os institutos estaduais de terra, tenham condições mínimas, como estrutura, mão de obra, recursos e transparência nas operações. No entanto, esse cenário é o oposto do que vemos hoje em dia.
Por fim, há ainda um enorme desafio de suprir lacunas de conhecimento para tornar viável uma gestão fundiária eficiente. Para ficar apenas num exemplo, hoje o Estado brasileiro não consegue afirmar com segurança se uma área pública é estadual ou federal.
Recentemente, o governo editou a Medida Provisória (MP) 910/2019. Essa medida é incapaz de superar os desafios descritos neste artigo, além de criar mais problemas. Se aprovada, ao alterar o marco temporal da lei, desta vez se abrirá caminho não apenas para a regularização da grilagem, mas também para o desmatamento ilegal, em total contramão da Lei de Gestão de Florestas Públicas (Lei n.o 11.284/2006) e do Código Florestal. A MP 910 beneficiará ocupações e desmatamentos muito recentes, realizados até dezembro de 2018. Dessa forma, a nova norma terá o mesmo fim das outras leis de regularização fundiária.
Dentre outros problemas, está também um atraso ainda maior nos processos em curso – pela sobrecarga em órgãos que não têm como absorver tais mudanças – e a possibilidade de aumentar a sobreposição de terras, por causa da dispensa de anuência dos confrontantes para a regularização proposta pela MP.
O Congresso precisa estar alerta para pautas que são apresentadas como supostas soluções de temas que exigem uma avaliação pública e responsável de seus gargalos. Isso significa promover muito mais diálogo do que o trâmite de uma medida provisória pode propiciar. O desafio da regularização fundiária é complexo e exige a participação intensa de vários atores envolvidos e impactados, como as comunidades locais, produtores rurais, academia, sociedade civil e outros do próprio governo (ICMBio, Ibama, Incra, etc.), que ainda não foram ouvidos.
Quanto nos custou, até agora, a ausência de uma solução adequada para a regularização fundiária? Segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), 35% do desmatamento na região, entre 2018 e 2019, se verificou em terras públicas. Esse dado dá uma dimensão do tamanho da grilagem nos últimos anos.
Portanto, o Brasil tem ampla experiência em como não resolver esse problema. Precisamos aprender com os erros para pensar o futuro. É hora de enfrentar as causas da falta de regularização fundiária e nós, membros da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, estamos à disposição da sociedade, do governo e do Congresso para engajar os vários setores e buscar caminhos para a solução desta que é uma das maiores mazelas do nosso país. Todos são bem-vindos nesse diálogo e construção coletiva.
André Guimarães, diretor executivo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, e Marcello Brito, presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG).
O Estado de São Paulo