Cadeia da soja ajusta estratégias contra quebras de contratos

Em uma temporada com forte oscilação dos preços das commodities e indícios de perdas na produção brasileira na segunda safra, produtores rurais e tradings estudam formas de melhorar a relação contratual para vendas futuras de grãos e evitar desgastes na cadeia.

A ideia é criar um mecanismo que evite a judicialização dos casos de quebra dos acordos e que possa punir apenas quem agir de má-fé.

Se avançar, a iniciativa incluiria a publicação de uma “lista suja” de devedores, abrindo possibilidade de negociação extrajudicial, se o descumprimento ocorrer por problemas nas lavouras decorrentes de questões climáticas ou outros imprevistos.

Apesar do temor que havia no início do ano de uma quebra generalizada desses acordos, apenas 0,50% dos mais de 100.000 contratos de venda antecipada de soja tiveram inadimplência, segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) e a Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec).

De acordo com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), 99% dos produtores honraram os compromissos de entrega de grãos.

Ações

Mas houve alguns picos. No Santos Neto Advogados, um dos principais escritórios que trabalham com o agronegócio no país, o número de ações judiciais para cumprimento dos contratos aumentou mais de 30%.

“A enxurrada de processos chegou, mas foi bem menor que o esperado pelas tradings”, disse ao Valor Fernando Bilotti, sócio da área de contencioso estratégico do escritório, que moveu 50 ações em nome de seis tradings.

O maior número de ações foi registrado em abril, logo após início da colheita. Elas envolveram produtores de Mato Grosso, Matopiba (confluência dos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) e Paraná, cerca de R$ 50 milhões e 32.000 toneladas de soja.

Os contratos haviam sido fechados, em média, a R$ 95,00 por saca. A cotação da oleaginosa chegou a R$ 180,00 durante o ano.

Bilotti disse que a maioria dos processos é solucionada com acordos em que as tradings abrem mão de depositar valores em juízo ou cobrar os custos da ação ou do frete para buscar os grãos.

“Mas também há casos de desvio. Produtores que não entregavam a soja, não informavam e, apesar de ofício de arresto, o produto não era localizado. Nesses casos, pode-se atuar com ‘washout’ ou penhora de ativos com a colheita da próxima safra de milho”, afirmou o advogado.

Resolução de conflitos

Mesmo que as quebras de contratos não tenham disparado, como se temia, as discussões sobre aperfeiçoamento da cadeia ganharam força. As partes cogitam agora criar câmaras de resolução de conflitos para evitar a judicialização dos casos e de comitês de arbitragem imparciais para condenar maus pagadores e divulgar uma “lista suja” dos devedores.

Segundo Renato Buranello, presidente do Instituto Brasileiro do Direito do Agronegócio (IBDA) e sócio do escritório VBSO Advogados, é viável criar mecanismos alternativos, como câmaras de mediação e arbitragem, para filtrar os casos e ter solução mais eficiente e menos custosa do que judicializar a questão. O modelo já é aplicado na cadeia do algodão.

“A exceção tem de estar prevista em mecanismos de solução para o evento extraordinário e deixar para o judiciário apenas aquilo que não teve acordo entre as partes”, opinou Buranello.

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O presidente executivo da Abiove, André Nassar, disse que as tradings querem se proteger dos riscos do mercado e que uma das preocupações é a necessidade da incorporação de mais garantias, como o registro dos contratos, o que pode onerar o processo.

Segundo o dirigente, o comitê arbitral não soluciona o problema da falta de entrega de soja, pois a discussão toma tempo, mas pode dar publicidade ao nome dos maus pagadores ou quem usa de má-fé, de ambos os lados, para não cumprir os acordos.

“A gente gosta da ideia porque, se o árbitro atestar que alguma parte de fato não cumpriu o contrato, essa parte pode ser publicizada. A gente quer que seja publicizado até para ter uma análise completamente diferente com o produtor que está sempre fora dessa lista negativa”, disse Nassar.

“Se tem alguém quebrando o contrato e um terceiro julgar e comprovar, é bom para todo mundo que a informação seja pública”.

O desafio, segundo Nassar, é dar escala operacional para esse tipo de mecanismo, já que são 170.000 produtores de soja no Brasil. Cerca de 40.000 deles negociam a venda futura de grãos com as tradings associadas da Abiove e da Anec.

Multas e seguro

O advogado Fernando Bilotti afirmou que os contratos já foram modificados para dar mais liquidez. Isso porque a multa por descumprimento, de 10% a 30% do valor do produto, não cobre mais o prejuízo, com as cotações de soja e milho nas alturas.

“Foram incluídas cláusulas para que o produtor seja obrigado a indenizar a trading a preço de mercado em caso de descumprimento do contrato”, informou Bilotti. As tradings também discutem opções como aumentar a exigência de garantias e atuar com pagamento antecipado dos contratos.

Outra alternativa em discussão é atrelar cada vez mais o mecanismo do seguro rural aos contratos para que, em caso de perda de produção por questão climática, o credor possa receber parte cabível da indenização.

“É possível, já ocorre em operações no âmbito do mercado financeiro, mas cabe em relações comerciais com entrega física”, disse Buranello. “A oscilação de preços já tem precedentes, não é imprevisível e pode ser protegida”.

Milho pode causar rompimentos

Embora o número de contratos quebrados para a entrega de soja tenha sido bem menor que o esperado, as tradings veem um cenário mais desafiador para o milho. Com valorização ainda maior que a da oleaginosa, o milho enfrenta problemas climáticos e deve ter produção quase 10 milhões de toneladas menor que o estimado no início da safra.

“Os contratos passam a ser discutidos quando há uma quebra de safra relevante e podem gerar insatisfação quando você tem diferença de preço grande. No milho, temos esses dois problemas”, disse Nassar. “Temos esse desafio e vamos aprender bastante”.

A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) reduziu de 108 milhões para 96.4 milhões de toneladas sua estimativa para a produção de milho. A safrinha, responsável por quase 70% da produção, deve ficar em 69.9 milhões de toneladas. A estatal alertou que pode reduzir as estimativas ainda mais por causa da piora dos efeitos climáticos sobre as lavouras.

Nassar afirmou que a maioria dos casos de quebra de contrato pode ser resolvida no diálogo e, em situações extraordinárias, é possível negociar individualmente, com acordos até para entrega de parte do produto na safra seguinte. “A nossa visão é que se você não tem problema de produção, esse contrato deve ser honrado”, disse.

Café e cana

Já Bilotti acredita haver menos possibilidade de problemas do gênero ocorrerem nos mercados de café e cana-de-açúcar.

No primeiro caso, a cadeia é mais concentrada, com menos compradores, o que deixa os negócios mais ajustados. Já os produtores de cana estão geralmente próximos às usinas de açúcar e álcool. “Um eventual ‘desvio’ de carga praticamente anularia a margem de lucro, observou o advogado.

 

 

Fonte: Valor

Equipe SNA

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