Relatório final da concessão da Ferrogrão, em audiência pública desde 2017, deverá ser votado hoje ignorando compromisso firmado com populações indígenas que serão afetadas pela construção da ferrovia, um dos mais complexos projetos socioambientais do governo Jair Bolsonaro. A Ferrogrão será construída do zero. Terá 933 quilômetros de extensão ligando a região produtora de grãos do Centro-Oeste ao porto de Miritituba (PA).
No dia 12 de dezembro de 2017, diretores da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) se comprometeram com o povo Kayapó Menkrãgnoti a assegurar a eles consulta prévia nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) antes de enviar o projeto da Ferrogrão ao Tribunal de Contas da União (TCU). Cabe ao órgão analisar a documentação para liberar a publicação do edital.
A Convenção 169, que o Brasil ratificou, garante a consulta prévia, de boa-fé e bem informada dos povos indígenas e tribais antes de iniciado o processo decisório. O compromisso está registrado em ata assinada pelo superintendente de Infraestrutura e Serviços de Transporte Ferroviário de Cargas da ANTT, Alexandre Porto, e pelo presidente do Instituto Kabu, Anhê Kayapó. Foi firmado logo após audiência presencial realizada em Brasília para apresentação de contribuições acerca dos estudos técnicos e documentos jurídicos do projeto.
Contudo, segundo a minuta do relatório final da audiência pública à qual o Valor teve acesso, o cumprimento da Convenção 169 da OIT se dará no “âmbito do licenciamento ambiental e não durante a audiência pública”, destacou a área técnica da agência. Como o licenciamento ambiental será conduzido pelo empreendedor da Ferrogrão, se depreende que os povos afetados só serão consultados após a realização do leilão, restando a eles nessa etapa pouco a fazer. A votação do relatório está marcada para acontecer na reunião de diretoria da ANTT que começa às 10 horas desta terça-feira.
Procurada pelo Valor, a ANTT reiterou o compromisso de levar adiante a consulta prévia aos povos indígenas afetados pelo empreendimento. O processo, no entanto, carece de regulamentação no país. Não estão claros, conforme lembrou a agência a título de exemplo, pontos sobre o órgão responsável pela consulta ou como o processo deve ser conduzido. Por isso, tecnicamente, a ANTT diz agora que o melhor momento para fazer isso é durante o licenciamento ambiental.
Cientes disso, o Instituto Raoni pediu no início do mês urgência do Ministério Público Federal (MPF) para manter a suspensão do processo da Ferrogrão e assegurar o cumprimento da OIT. “Tivemos acesso ao relatório da ANTT onde consta registrado que não será cumprida a Convenção 169 da OIT, antes do envio do projeto ao TCU […] Manifestamos que não concordamos com a decisão da ANTT”, diz o texto.
“Aprovando o relatório, eles encaminham ao TCU e se o TCU liberar o edital está autorizada a realização do leilão. É um descaso da ANTT com relação às comunidades tradicionais e ao ambiente. As audiências presenciais não substituem a oitiva dos povos afetados. Se você não visita as comunidades, não ouve e não faz estudos, não tem como saber qual vai ser o real impacto social, econômico e ambiental”, disse Silvio Marinho, advogado dos trabalhadores rodoviários do Estado do Mato Grosso, da Cooperativa Mista Agroextrativista do Caracol (Coopamcol) e da Associação BR-163 Sustentável.
A ANTT programou inicialmente três audiências presenciais, depois aumentou para seis sessões, mas duas foram canceladas. Procurada, a agência ainda não se manifestou sobre o relatório da Ferrogrão.
O modelo de concessão será vertical: a empresa ou consórcio que arrematar o direito de explorar o ativo será responsável pela gestão da infraestrutura e prestação do serviço de transporte. A estimativa de investimento é de R$ 12.7 bilhões e a concessão será válida por 65 anos.
Valor