O Ministério da Agricultura já enviou dois pedidos de revisão do Guia Alimentar para a População Brasileira ao Ministério da Saúde este ano.
As demandas partiram de câmaras setoriais da Pasta de Tereza Cristina, que são fóruns consultivos formados por representantes dos setores público e privado. Eles criticam os reflexos negativos da publicação para a imagem e para o consumo de produtos como carnes, leite e até orgânicos.
A nota técnica do Ministério, divulgada na semana passada, aponta afirmações incoerentes e até “cômicas” no guia, e sustenta que a classificação “Nova”, envolvendo alimentos “ultraprocessados”, foi feita a partir de dados “pseudocientíficos”.
Um terceiro pedido chegou a ser enviado por e-mail ao ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, mas Tereza Cristina voltou atrás poucas horas depois e pediu que a mensagem fosse desconsiderada, segundo apurou o Valor.
A ministra rejeitou o teor da nota por avaliar que não era suficiente e consistente para fundamentar a discussão, e pediu ontem a sua equipe para que os argumentos sobre questões nutricionais (que envolvem produção e industrialização) sejam “tecnicamente bem embasados”.
Alterações
Mas os questionamentos ao Guia, publicado em 2014, no governo de Dilma Rousseff, começaram antes. O primeiro pedido de alteração foi enviado em 21 de maio e partiu da Câmara Setorial de Agricultura Orgânica, que solicitou uma correção semântica.
Direcionada a crianças com menos de dois anos, a publicação coloca os produtos orgânicos em categoria inferior aos de base agroecológica, como se estes fossem mais justos socialmente por valorizar pequenos produtores, dar condições de trabalho mais justas e zelar pelo ambiente.
“Isso acaba prejudicando todo um esforço que vem sendo feito pelo próprio governo com as campanhas de incentivo ao consumo de orgânicos”, diz o presidente da Câmara Setorial desses produtos, Luiz Carlos Demattê.
No dia 2 de junho, a Pasta pediu outras alterações, desta feita por solicitação da Câmara Setorial de Carne Bovina. Na visão do segmento, há menções equivocadas em relação à sustentabilidade da pecuária brasileira, como a vinculação da atividade ao desmatamento e à poluição.
“O Guia deixa claro o direcionamento ideológico ao criticar, de forma equivocada, as produções pecuárias. Ele não deve indicar a redução de produtos de origem animal, e sim indicar que devem ser consumidos em quantidades adequadas, conforme o perfil metabólico individual”, diz um documento de março assinado pelo presidente da Câmara Setorial da Carne Bovina, Antônio Pitangui de Salvo, que norteou o pedido de revisão.
Outras críticas
A Câmara Setorial de Leite e Derivados também reclamou. “Os produtores não compreendem o porquê de haver restrições ao consumo de queijos e iogurtes saborizados, por exemplo. O consumo per capita de queijos no Brasil é um quinto do dos países desenvolvidos. Por que isto? Todos somos favoráveis a um guia que oriente principalmente os profissionais ligados à alimentação e à saúde, mas estritamente baseado na ciência. Nada mais”, relatou Ronei Volpi, presidente da Câmara.
Na visão do Ministério da Agricultura, o “Guia” tem menções inadequadas e inapropriadas para um documento oficial que precisa ser convergente com as políticas públicas plurais da parte de nutrição, saúde e oferta de alimentos do governo como um todo. Mas a Ministra da Agricultura, Tereza Cristina, defende o diálogo.
“Ninguém quer contrariar o que a ciência está dizendo. A discussão é sempre salutar e não vejo porque não se pode discutir o assunto”, afirmou ela esta semana.
Estudo
O Valor apurou que o Ministério da Agricultura também se baseou em um estudo internacional, publicado este ano no periódico “The British Medical Journal” (BMJ), para indicar as alterações. Para a Pasta, o trabalho, que analisou guias do mundo inteiro, mostra que a publicação brasileira é de difícil compreensão e que a “falta de clareza” ou suas “incertezas” comprometem o sucesso das políticas públicas.
Os cientistas que elaboraram o estudo, no entanto, se disseram “chocados” com o uso do material para “atacar” o Guia Alimentar brasileiro. “Uma revisão defendida pelo Ministério da Agricultura, em vez do Ministério da Saúde, e influenciada pela indústria de alimentos, corre o risco de que as diretrizes se tornem menos ambiciosas em aspectos cruciais e não enfatizem adequadamente a importância de limitar o consumo de alimentos processados, de carne bovina e laticínios”, disse ao Valor Marco Springmann, pesquisador da Universidade de Oxford, no Reino Unido.
“É ridículo sugerir que nosso estudo apoia a eliminação desse conselho”, afirmou Anna Herforth, pesquisadora da Universidade de Harvard, nos EUA.
Pesquisadores da USP, por outro lado, apontaram erros no conceito de processamento de alimentos do Guia e consideram algumas informações “alarmantes”. O termo “ultraprocessados”, realçaram, “não é reconhecido pela Engenharia e Ciência de Alimentos”.
Sobre as sugestões para evitar esses alimentos devido à presença de ingredientes como sal, açúcar e gorduras, os especialistas disseram que mesmo os produtos minimamente processados podem conter esses elementos.
Fonte: Valor Econômico
Equipe SNA