Enquanto anistia esse setor, a agenda verde globalista ataca agricultores, rebanhos e combustíveis veiculares
Se o setor marítimo fosse um país, seria o oitavo maior poluidor do planeta. O frete marítimo é campeão em emissões de gás carbônico (CO₂), óxidos de enxofre (SOx), óxidos nítricos (NOx) e outros poluentes. Suas emissões não param de crescer, em trajetória incompatível com o Acordo de Paris. O transporte marítimo representa 3% das emissões mundiais e, sem mudanças significativas, atingirá 17% em 2050. A agenda verde globalista ataca agricultores, rebanhos e combustíveis veiculares. E com uma cecidez oceânica anistia o setor de fretes marítimos.
Em matéria de combustível, a indústria da navegação marítima prefere quantidade a qualidade. Da frota mundial de cerca de 100 mil barcos, mais da metade são navios mercantes, transportadores de contêineres, produtos químicos, gás, petróleo etc. Grandes consumidores de energia, responsáveis por mais de três quartos das emissões atmosféricas do setor, eles utilizam um dos mais “sujos” combustíveis para circular pelo planeta: o petróleo-bunker. Nas refinarias, após a extração dos produtos mais leves do petróleo bruto (gasolina, nafta, butano, diesel etc.), sobra esse resíduo espesso e fétido. Apenas o asfalto, usado em estradas, é mais pesado.
O bunker é o sangue impuro da globalização. Um grande navio de carga consome entre 140 e 300 toneladas por dia para propulsão e geração de eletricidade. O bunker é barato e menos tributado.
Há quase um século é calcinado nos motores gigantes e “onívoros” dos navios, capazes de digerir qualquer combustível. A navegação consome 250 milhões de toneladas bunker por ano (uns US$ 65 bilhões), algo como 10% da produção petrolífera mundial.
Narrativas ambientalistas e midiáticas atacam a agropecuária e os automóveis, enquanto a atividade náutica navega e polui os sete mares, sem queixas. A agropecuária é grande produtora de combustíveis renováveis (etanol, biodiesel, lenha, carvão e biogás). Ela gera 31,4% da matriz energética do Brasil e só consome 4,8%. A agricultura remove CO₂ da atmosfera pela fotossíntese e o estoca em vegetais, animais e solos. O transporte marítimo usa o pior combustível fóssil, cuja combustão emite um coquetel de gases de efeito estufa (GEE).
Imagem de tawatchai07 no FreepikO total de CO₂ emitido pelo setor marítimo foi de 600 mil a 1,1 milhão de toneladas por ano na última década, segundo relatório do IPCC. O dióxido de enxofre emitido é corrosivo e na atmosfera dá origem ao ácido sulfúrico, causador da chuva ácida. A emissão de enxofre é de 3 mil a 3,5 mil ppm em navios movidos a bunker. Pelas normas brasileiras e com a mistura de etanol, um carro emite menos de 40 ppm. Na Europa, menos de 15 ppm. Um grande navio de transporte emite o equivalente a 50
milhões de carros. Só a emissão de enxofre dos 20 maiores navios de transporte é superior à de todos os veículos do planeta! E são cerca de 100 mil navios.
Sua fumaça e fuligem contêm metais pesados, compostos orgânicos voláteis (COV) e partículas finas. A exposição crônica ou episódica a eles pode levar a crises de asma e enfisema, ao surgimento e agravamento de patologias cardiovasculares, respiratórias, neurológicas e cânceres. Populações portuárias e litorâneas são as mais atingidas. Nada semelhante ocorre no mundo rural. Seu
território exibe qualidade do ar invejável, superior à de áreas industriais e urbanas. Cidadãos urbanos buscam a natureza no campo e no contato com o mar.
Em 2023, 32 milhões de turistas optaram por cruzeiros marítimos, o maior crescimento no turismo pós-covid. A frota crescerá 20% até 2028. Um único navio de cruzeiro a bunker emite óxido de enxofre como 30 mil caminhões. Segundo a plataforma Greenly, 200 navios de cruzeiro emitiram em 2022 tanto CO₂ quanto 5.236 voos Paris-Nova York (220 passageiros). Isso não está na publicidade dos cruzeiros, nem chega aos turistas. Essa face oculta dos cruzeiros daria outro sentido ao desfrute da natureza para passageiros em espreguiçadeiras lendo e discutindo sobre desmatamento, pecuária na Amazônia e como salvar o planeta.
Respirar fumaça negra num cruzeiro marítimo não é agradável. Armadores começam a investir em combustíveis menos poluentes e em depuradores. O gás natural liquefeito (GNL) é a principal opção, fácil de transportar e adaptável a vários tipos de navios. Boa notícia: metade dos navios de
cruzeiro em construção usarão GNL, e o MSC World Europa foi um dos primeiros.
O GNL reduz drasticamente emissões de enxofre e partículas finas. Não as de carbono, cuja redução é apenas de 10%. E há os riscos de vazamento de metano, principal constituinte do GNL, 30 vezes mais ativo como GEE, comparado ao CO₂. Os motores desses navios apresentam muitos vazamentos. A “emissão” de metano de cada um equivale à de 10 mil vacas. Bovinos estão no ciclo do carbono renovável (fotossíntese-pastejodejeção), e não no do combustível fóssil. O carbono emitido foi retirado da
atmosfera há pouco tempo.
Enquanto a agenda verde globalista denuncia a gravidade de arrotos e flatos das vacas, a navegação polui, alegre e invisivelmente, nos três quartos líquidos da superfície planetária.
A principal solução estará nos combustíveis renováveis, produzidos sobretudo pela agricultura. O maior armador mundial, Moller-Maersk, está colocando em serviço 20 navios movidos a e-metanol, produzido na Espanha com CO₂ e hidrogênio verde, obtido com eletricidade renovável (eólica). Metanol ou e-metanol produzidos de madeira, resíduos agrícolas e hidrogênio verde também quase não emitem
GEE. Ainda são caros em relação ao GNL. O custo cairá na década de 2030.
Veneza proibiu o acesso de grandes cruzeiros e saiu de porto mais poluído da Europa em 2019 para a 41ª posição em 2021.
Novas alternativas de motorização estão a caminho, assim como a propulsão a vela solar e outras tecnologias da indústria naval otimizam cada vez mais as rotas para ganhar eficiência energética. A redução da velocidade, passível de adoção por todos, salvo em gêneros perecíveis, diminuiria as emissões, mas não tem adesão.
Sistemas de purificação nas chaminés obtêm uma redução de 98% na fuligem, 99% nos óxidos de enxofre e 85% nos de nitrogênio. Bom para o ar, ruim para o mar. A purificação se faz pela pulverização de água nos sistemas de exaustão. A água com metais pesados, partículas finas, nitratos, cinzas e hidrocarbonetos policíclicos aromáticos é lançada no mar. Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, diz a Lei da Conservação das Massas, de Lavoisier.
Para o International Council on Clean Transportation, navios de cruzeiro produzem mais de 10 bilhões de toneladas de água de lavagem por ano. Portugal proibiu depuradores de ciclo aberto em seus portos. A Espanha, em alguns deles. A solução: o depurador de ciclo fechado, cuja colocação custa entre US$ 5 milhões e US$ 9 milhões por barco. Veneza proibiu o acesso de grandes cruzeiros e saiu de porto mais poluído da Europa em 2019 para a 41ª posição em 2021. Amsterdã adotou a mesma decisão.
Graças a melhorias no combustível e na depuração dos gases emitidos, entre 2019 e 2022, enquanto a circulação dos navios de cruzeiro aumentou 26% na Europa, as emissões de SOx cresceram apenas 9%. Ainda assim são equivalentes às de 1 bilhão de carros. Os navios da MSC Crociere, em 2022, emitiram tanto SOx quanto 300 milhões de carros. A emissão da Carnival Corporation (63 navios de cruzeiro, a maior frota do mundo) foi 43% superior à de todos os carros existentes na Europa.
Nos cruzeiros, águas cinza de cozinhas, lavanderias etc. vão ao mar, após algum tratamento. Um navio de 3 mil passageiros lança cerca de 3,8 milhões de litros por semana. Águas negras dos banheiros (matéria fecal e urina), ricas em bactérias, também são lançadas no mar: cerca de
800 mil litros por semana.
Os cruzeiros geram um quarto dos resíduos sólidos do tráfego marítimo. A produção média de lixo a bordo, em um único dia, é da ordem de 7 toneladas. E se aproxima de 20 toneladas em gigantes como o Wonder of the Seas. Há risco de parte desses restos de plásticos, papelão ou alumínio acabar no mar.
Problemas ambientais do transporte marítimo não isentam a agricultura de cuidar dos seus. Se a agropecuária deve sempre ampliar sua sustentabilidade, são muitos os deveres do transporte marítimo. Além dos impactos mencionados, a poluição sonora dos navios percorre longas distâncias e prejudica a comunicação, orientação e alimentação dos mamíferos marinhos (orcas, baleias, golfinhos…), segundo a Convenção sobre a Conservação das Espécies Migratórias. Também ocorre a introdução de espécies invasoras pelos milhões de toneladas de água de lastro, levadas de um oceano a outro, como em Santos.
A Convenção para a Gestão da Água de Lastro da Organização Marítima Internacional (IMO) impôs a navios construídos após 2017 o tratamento antes dessa descarga de lastro. A perda anual de contêineres,
chegando a 15 mil, com cargas tóxicas, explosivos etc., causa riscos e acidentes de navegação, sob a indiferença das autoridades. Há destruição de recifes de corais por âncoras. O MS Caledonian destruiu mais de 5 mil metros quadrados de corais na Indonésia, um dano de US$ 20 milhões. A desgaseificação de tanques responde por mais de 20% das descargas de petróleo.
A Convenção Internacional sobre Poluição Marinha ajudou a diminuí-las pela metade e, sobretudo, os derramamentos de óleo (marés negras). O setor da navegação tarda em mudar de rota. Na COP27, a IMO pediu “carbono zero” até 2050, em vez da redução em 50% do Green Shipping Challenge. Para o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, o setor marítimo dobrará suas emissões, dado o
crescimento constante do frete, como ilustra o caso brasileiro.
Em 2023, segundo a Agência Nacional de Transportes Aquaviários, o setor teve movimentação de 1,3 bilhão de toneladas: a maior registrada na série histórica, um crescimento de 6,9% em relação
a 2022. O peso do agro foi decisivo. A navegação interior cresceu 10,5%; e a de longo curso, 8,3%. As principais mercadorias foram soja (+29%), milho (+18%), petróleo (+9,4%), minério de ferro (+7,6%) e fertilizantes (+6,9%). Para 2024, a previsão é de 2,3% de crescimento. A exportação de soja e milho nos portos do Arco Norte superou o resto do Brasil: 100,8 milhões de toneladas em 2023 (ante 88,5 milhões de toneladas em 2022). Por via marítima, o país responde por 58% das exportações mundiais de
soja e 27% das de milho.
A eficiência do transporte aquaviário é inegável. O setor marítimo assegura mais de 70% das toneladas-quilômetros (tkm) transportadas no planeta por todos os meios (aquaviário, rodoviário, ferroviário, aeroviário e dutos) e representa apenas 16% das emissões totais desse transporte. E é barato. Exemplo: escoceses pescam o bacalhau e o enviam de navio para a China. Lá ele é limpo, cortado, preparado e embalado. Retorna de barco à Escócia e é exportado.
Custos de fretes aumentarão. Aos poucos, países exigem aos navios desligarem seus motores auxiliares no porto e se conectarem à rede de energia elétrica. Essa regra de eletrificação portuária será impositiva
na Europa em 2025. Em 2023, os 175 países da IMO fixaram o objetivo da neutralidade de carbono “por volta” de 2050, com pontos de controle indicativos, não vinculativos, para 2030 e 2040. O enxofre no combustível passará do atual 0,5% para 0,1% em 2025. Os navios devem calcular seu índice de eficiência energética e coletar dados para um relatório anual da emissão de CO₂ do transporte de cargas, hoje fora das contas nacionais.
Omissa sobre a sustentabilidade da agropecuária, a narrativa verde globalista ataca agricultores e rebanhos, aqui e no mundo, e impõe políticas desvinculadas da realidade rural. Ao visarem público e não povo, são minimizados ou ignorados diversos desafios que afetam o planeta, como perda florestal do Canadá por incêndio.
Artigo originalmente publicado na revista Oeste e gentilmente cedido à redação da Sociedade Nacional de Agricultura pelo autor Evaristo de Miranda, que também integra a Academia Nacional de Agricultura da SNA.