Crise do arroz expõe política frágil de estocagem

A forte alta dos preços de alimentos básicos como arroz e feijão no País em meio à pandemia expôs as dificuldades do governo para interferir no mercado nesse cenário e gerou duras críticas da sociedade civil, uma vez que os aumentos se sucederam em um ambiente de renda em geral deprimida.

Cerca de 25% mais caro nas gôndolas, o arroz virou protagonista de uma crise política em Brasília, com potencial de desgastar a popularidade de Bolsonaro, e a resposta do presidente, restrita a apelos aos varejistas e à criação de uma cota de importação isenta de tarifa, tende a ter efeitos limitados.

O fato é que os instrumentos à disposição do Ministério da Agricultura estão voltados, por lei, para situações de quedas de preços e garantia de renda dos produtores, e não para a contenção de escaladas.

Ao rechaçar um tabelamento, a única alternativa no arsenal oficial foi facilitar a entrada de 400.000 toneladas do cereal de fora do Mercosul sem as taxas de 10% para o arroz em casca e 12% para o beneficiado, mas num momento em que o câmbio é desfavorável e os preços internacionais também estão elevados.

Muito diferente do que acontece, por exemplo, em importadores de alimentos como a China, que usa sua política de estoques, normalmente de grandes quantidades, para controlar preços no mercado doméstico e mesmo no front externo, no caso de commodities em que suas importações são amplas, como algodão e soja.

Também dependentes de importações, nações do Oriente Médio estão entre as que armazenam alimentos para garantir a segurança alimentar e evitar inflação e distúrbios sociais.

Na África, outras tantas precisam de ajuda externa para suprir os estoques que tentam manter. Em países “ricos” como Estados Unidos e os europeus da UE, os subsídios, cada vez maiores também na China, são a arma preferida dos governos, mas também normalmente voltados para garantir limites mínimos de renda aos produtores.

Sem risco de desabastecimento de arroz ou qualquer outro item da cesta básica, a avaliação no Planalto é que uma “tempestade perfeita” se formou, resultando na valorização dos alimentos no mercado doméstico, e que o mercado vai se ajustar – no caso do arroz, em uma ou duas safras.

Mas o problema foi criado, embora os rizicultores não tenham conseguido compensar os prejuízos das safras anteriores (segundo cálculos do Cepea/Esalq), a indústria não tenha repassado para o varejo todo o aumento da matéria-prima e a maior parte da população esteja com os cintos apertados para gastar mais com itens que são essenciais.

Para o economista Newton Marques, professor da Universidade de Brasília (UnB), o problema foi criado pela falta de planejamento da política macroeconômica do governo. “O governo nunca imaginou que tivesse que usar o Estado como regulador, e deixou que o mercado se resolvesse”, criticou.

Segundo ele, paradoxalmente, nem os governos mais intervencionistas do passado pediram aos supermercados que reduzissem seu lucro, como Bolsonaro, que diz seguir uma cartilha liberal. “Não há mais política de estoques reguladores, e essa e outras ferramentas não foram atualizadas”, disse.

Com o aumento da produção no campo e a virada da balança comercial do agronegócio brasileiro, a partir da década de 1990, o foco dos instrumentos voltados a garantir a comercialização e o abastecimento passou a se concentrar na renda dos produtores.

Já nesse sentido, a última vez que o governo interveio no mercado de arroz de forma considerável foi há dez anos, quando movimentou três milhões de toneladas. Na ocasião, recorreu a leilões de Pep (Prêmio para Escoamento do Produto) e Pepro (Prêmio Equalizador Pago ao Produtor Rural), que funcionam como subsídios de apoio às vendas e não resultam em estoque.

Com o esvaziamento da política, há hoje apenas 22.000 toneladas do cereal em armazéns da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), principalmente no Rio Grande do Sul (principal estado produtor do País), Bahia e Mato Grosso do Sul.

Para se ter uma ideia, a Conab estima que o consumo interno foi de 10.8 milhões de toneladas na safra 2019/20, para uma produção de 11.2 milhões de toneladas. A Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM), como sugere o nome, não serve para “preços máximos”, e alternativas como AGF (Aquisição do Governo Federal) e EGF (Empréstimo do Governo Federal) – que financia estocagem, também têm por meta garantir pisos para os preços, bem como os contratos de opção de venda. Ou seja, para debelar a crise do arroz restou a cota de importação.

“Os melhores esforços que podíamos fazer nesse momento já foram feitos”, disse ao Valor o presidente da Conab, Guilherme Soria Bastos Filho. “Não há desabastecimento, mas não teve comercialização com antecedência. O produtor vê preços maiores e deixa para vender lá na frente, pois tem de fazer composição de receita”.

O diretor de Comercialização e Abastecimento do Ministério da Agricultura, Silvio Farnese, reforça que a lei só permite aquisições quando o preço está abaixo do mínimo, o que não é caso atual. “E mesmo que o governo entrasse mais cedo comprando arroz (por meio de contratos de opção, por exemplo), ele anteciparia a crise. Formação de estoque tem de ser feita quando há excedente de produção, o que não é o caso do arroz, que tem consumo ajustado”.

Mesmo com os respingos na popularidade de Bolsonaro, a crise do arroz não anima nem os saudosistas a tentarem ressuscitar a política de formação de estoques reguladores. Não haverá alteração nas diretrizes gerais ou ações pontuais direcionadas ao cereal, um dos poucos alimentos sem substituto à altura no prato dos brasileiros. Segundo o presidente da Conab, a conjuntura não muda “de jeito nenhum” essa orientação.

“Manter estoque é algo absurdamente caro e a experiência em todo mundo não é exitosa. E tabelar preços é mais absurdo ainda”, acrescentou Farnese. “Temos um consumo doméstico da ordem de 140 milhões de toneladas de grãos como soja, milho, arroz e feijão, fora carnes, leite, café, os produtos da cesta básica. Qual nível de estoque estratégico que a sociedade está disposta a fazer?”, indagou Bastos Filho.

Nas contas da Conab, existem 4.2 milhões de toneladas de arroz armazenadas no Brasil atualmente, a maior parte na mão de grandes produtores capitalizados. A indústria tem cerca de 200.000 toneladas, 82% menos que na mesma época de 2019. Ou seja, esse estoque privado é capaz de atender o consumo ao menos até o fim do ano. Depois disso e até fevereiro, caso a demanda não caia por causa do encarecimento, a cota de importações tende a ser suficiente.

A celeuma ao menos estabeleceu um novo teto para os preços no campo. Depois de atingir o recorde de R$ 105,81 a saca de 50 quilos do mercado gaúcho, no dia 10, o indicador Esalq/Senar-RS para o arroz em casca voltou para mais perto de R$ 104,00. Nas gôndolas de São Paulo, o pacote de cinco quilos ainda chega a variar de pouco mais de R$ 10,00 até cerca de R$ 40, 00, conforme tipo e qualidade. E as receitas à base de batata se multiplicam, até com feijão, que, diga-se de passagem, também está caro.

 

Fonte: Valor Econômico

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