*Por Ricardo Quass Duarte e Fernando Pellenz
A recentíssima Lei 13.986/20, mais conhecida como a Lei do Agro, trouxe duas importantes alterações na Lei 5.709/71, que regula a aquisição de terras rurais por estrangeiros.
A primeira delas consiste em afastar do âmbito de incidência da Lei 5.709/71 as hipóteses de “constituição de garantia real, inclusive a transmissão da propriedade fiduciária em favor de pessoa jurídica, nacional ou estrangeira”.
A segunda deixa claro que a Lei 5.709/71 não se aplicará “aos casos de recebimento de imóvel em liquidação de transação com pessoa jurídica, nacional ou estrangeira, ou pessoa jurídica nacional da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e que residam ou tenham sede no exterior, por meio de realização de garantia real, de dação em pagamento ou de qualquer outra forma.”
Há limitações à aquisição de imóveis rurais por estrangeiros, como determina a Constituição. Essas alterações são extremamente positivas e têm sido comemoradas pelos players do agronegócio.
Com efeito, ao afastar as duas hipóteses da incidência da Lei 5.709/71, o legislador está dispensando o estrangeiro de uma série de exigências burocráticas, como apresentação de projeto de exploração do imóvel, aprovações prévias do Incra, do Ministério da Agricultura e do Congresso Nacional, além das limitações quanto ao tamanho da propriedade rural.
Apesar de a Lei 5.709/71 não vedar a constituição de hipoteca nem a alienação fiduciária de imóveis rurais para estrangeiros, havia controvérsia acerca de tais possibilidades, principalmente em relação à alienação fiduciária, o que gerava um cenário de insegurança jurídica para os investidores estrangeiros.
No caso da alienação fiduciária, por exemplo, havia quem entendesse que ela não poderia ser aperfeiçoada, pois a propriedade rural, ainda que resolúvel, não poderia ser transferida para estrangeiros, sem a observância dos requisitos da Lei 5.709/71.
Outros entendiam que a alienação fiduciária poderia ser constituída, mas, em caso de inadimplemento, a propriedade não seria consolidada em favor do estrangeiro. A Lei do Agro acaba com essa insegurança jurídica.
Além disso, a Lei do Agro abre a possibilidade de pessoas jurídicas estrangeiras, ou pessoas jurídicas brasileiras com a maioria do capital social estrangeiro, receberem imóveis rurais, sem a observância das restrições da Lei 5.709/71, quando for necessária a liquidação de transações.
Em caso de inadimplemento de contrato de alienação fiduciária, por exemplo, o estrangeiro poderá consolidar a propriedade do imóvel rural em seu nome, depois de obedecidos os trâmites legais previstos na Lei 9.514/97. Outra possibilidade trazida pela Lei do Agro é a de um imóvel rural ser dado em pagamento a um credor estrangeiro, ao liquidar um contrato de mútuo.
A Lei do Agro mal entrou em vigor e já há vozes sustentando a inconstitucionalidade de tais alterações. Há quem entenda que elas feririam o Art. 190 da Constituição Federal, que dispõe que “a lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional”.
Contudo, as duas alterações promovidas pela Lei do Agro não ofendem a Constituição.
Em primeiro lugar, é importante lembrar que a Lei 5.709/71 continua em vigor. E o que ela faz é justamente regular e limitar a aquisição de propriedade rural por estrangeiros. A título exemplificativo, pessoas estrangeiras, físicas ou jurídicas, continuam proibidas de comprar mais de 1/4 da superfície do município onde se localize o imóvel rural.
Além disso, pessoas da mesma nacionalidade não podem ser proprietárias de mais de 40% sobre o referido limite de um 1/4. Há, portanto, limitações à aquisição de imóveis rurais por estrangeiros, como determina a Constituição.
Ademais, a Constituição não impede o legislador de estabelecer exceções às restrições por ele impostas. Antes mesmo da Lei do Agro, a Lei 5.709/71 já estabelecia que casos de sucessão legítima estavam fora da hipótese de abrangência da lei. Nem por isso argumentou-se que tal exceção seria inconstitucional.
O que a Lei do Agro fez foi justamente trazer novas exceções à Lei 5.709/71. Entendeu o legislador, de modo bastante acertado, que não se pode equiparar uma compra e venda de um imóvel rural com a constituição de uma garantia, ou com a utilização do imóvel rural para liquidar uma transação financeira legítima.
O que o legislador pretendeu, com tal alteração, não foi que mais estrangeiros se tornem proprietários de imóveis rurais, mas sim, que mais estrangeiros financiem as atividades do agronegócio brasileiro. E, para tanto, é necessário que eles tenham a segurança jurídica de que, em caso de inadimplemento, o imóvel rural constituirá uma garantia válida e eficaz. E que pode ser executada de forma ágil, independentemente de autorizações e procedimentos burocráticos.
*Ricardo Quass Duarte e Fernando Pellenz são, respectivamente, mestre em direito pela USP e Columbia University; mestre em agronegócios pela UFRGS e sócios de Souto Correa Advogados.
Valor Econômico