A multiplicação de pedidos de recuperação judicial (RJ) de produtores têm tirado o sono das tradings e bancos que financiam a safra brasileira de grãos, sobretudo a soja, carro-chefe do agronegócio no país. Em parte por causa desses pedidos, na semana passada as tradings anunciaram que vão diminuir pela metade seus financiamentos da temporada 2019/20, cujo plantio começará em setembro.
Fontes calculam que, em média, as tradings financiam de 30% a 35% da safra nacional de soja e milho, principalmente por meio de operações de “barter” (troca de insumos pela colheita futura), que embutem taxas de juros de 20% a 25% ao ano.
O temor das tradings, entre as quais multis como Cargill, Bunge, ADM, Louis Dreyfus Company e Cofco International, aumentou depois de aprovados pela Justiça Federal, no começo do mês, enunciados que podem facilitar as recuperações judiciais de produtores rurais.
Segundo o advogado Euclides Ribeiro da Silva Junior, do escritório ERS Advocacia, de São Paulo, nos primeiros cinco meses do ano foram feitos 43 novos pedidos do RJ de produtores rurais no país. Em todo o ano passado, foram 68 pedidos, em comparação a apenas 16 em 2017. Todos esses pedidos, porém, ainda são passíveis de questionamentos por credores, entre os quais bancos, tradings e fabricantes e distribuidoras de insumos.
O advogado explica que os enunciados aprovados pela comissão científica de direito comercial da Justiça Federal abrem caminho para que recuperações de produtores rurais sem o cadastro mínimo de dois anos em junta comercial tenham efeito e não possam ser contestadas.
“Parece que caiu a ficha para todo mundo. O agronegócio não estava pagando os custos da operação”, afirmou Ribeiro. Seu escritório assessorou oito novos pedidos de recuperação do setor em Mato Grosso neste ano, cinco dos quais de empresários rurais.
Está em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STJ), o caso do empresário rural José Pupin, um dos maiores produtores de algodão do país, e de sua esposa, Vera Lúcia Camargo Pupin. O que for decidido deverá se tornar referência para novas decisões e servir como base para um entendimento definitivo.
O plano de recuperação do empresário foi aprovado em junho do ano passado. Contudo, advogados de credores entraram com liminares alegando que “não se submete aos efeitos da recuperação judicial o crédito constituído sob o regime não empresarial”. Caso o STJ entenda o contrário, a decisão poderá ser uma diretriz para casos semelhantes.
No caso de Pupin, as dívidas em nome de sua empresa (J. Pupin) somam R$ 92.7 milhões, mas o total, considerando os débitos em nome do casal Pupin, chegam a R$ 1.3 bilhão. Ainda é comum no país essa confusão contábil entre as movimentações financeiras das empresas criadas com foco na produção rural e das pessoas físicas que as criaram.
Considerando o enunciado aprovado pelo conselho da Justiça Federal, é bem possível que o caso seja favorável à recuperação de Pupin. O texto afirma ser possível o processamento da recuperação judicial do produtor rural inscrito há menos de dois anos na junta comercial – desde que, pelo menos por esses dois anos, ele tenha inscrição fiscal regular na condição de produtor rural.
Assim, estariam sujeitos à recuperação todos os créditos existentes na data do pedido. É comum o empresário que entra com pedido de RJ ter cadastro como empresário rural há mais de uma década, mas sem registro na junta comercial.
Há vários casos de produtores endividados em Mato Grosso, estado responsável por 30% da colheita nacional de soja e milho e 70% de algodão. O perfil dos produtores que já entraram com pedido de RJ é variado, mas normalmente suas áreas superam 5.000 hectares. As dívidas vão de R$ 50 milhões a R$ 500 milhões.
“Aumentou muito o risco de um produtor acessar a RJ por causa desses casos que estão aí”, disse André Nassar, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de óleos Vegetais (Abiove), em evento da entidade na semana passada.
O que deixa as tradings mais ansiosas é a possibilidade de o cadastro na junta comercial por dois anos ser dispensado. “Se a RJ continuar no modelo que está, a trading vai se expor menos”, afirmou Nassar.
Ainda que gere incertezas, a ameaça das tradings não significa que faltará recursos para a safra. “Oferta de dinheiro para financiar a safra nunca foi problema. Não é à toa que a produção está sempre crescendo”, disse o próprio Nassar.
Neste momento, a questão é a que taxas de juros o cultivo será financiado. A redução dos subsídios do governo aos juros de algumas linhas do Plano Safra, que será anunciado amanhã, fomenta ainda mais esse debate, e bancos também alertam para os riscos elevados de financiar os agricultores.
“O pedido de recuperação judicial de um produtor rural, estando ele ou não inscrito na junta comercial, quebra um lastro de confiança”, disse Pedro Fernandes, diretor de agronegócios do Itaú BBA.
Segundo ele, toda dificuldade de execução de uma dívida gera insegurança jurídica. “O custo de uma linha financeira é ajustado pelo risco”. Para além disso, o elevado números de RJs deixa o crédito mais seletivo. “Assim, mesmo o custo de financiamento dos bons produtores pode aumentar”, afirmou Fernandes.
Nos últimos dois anos, revendas e bancos privados, além das cooperativas de crédito, ganharam espaço no financiamento da safra, disse o gestor técnico do Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária (Imea), Claiton Gauer.
“Nas safras de 2013/14 e 2014/15, o produtor estava mais capitalizado e as revendas, mais estruturadas. Depois de 2015, esse cenário se inverteu, com muitas revendas fechando, o que abriu espaço para as tradings”. Agora, porém, os financiamentos a juros livres por bancos e revendas voltaram a aumentar.
O financiamento estrangeiro também tem aumentado com a entrada de chineses e fundos de investimentos em revendas de insumos de grandes regiões produtoras do país, como Mato Grosso e Paraná. “O que não falta é grupo querendo financiar a produção no Brasil. Os chineses são os primeiros”, disse uma fonte que preferiu não se identificar.
Segundo Gauer, há relatos no segmento de que as tradings já estão, progressivamente, diminuindo a participação de financiamento da safra, até porque não é seu negócio central. “No passado, a trading precisou garantir o produto e entrou mais agressivamente no financiamento da safra via “barter””, afirmou.
De todo o modo, quando a operação de “barter” é feita por revendas, o destino final do grão é a trading. “É feita uma triangulação, a revenda faz a operação de troca e entrega o grão para a trading, mas o risco de crédito é da revenda”, disse Gauer.
Valor Econômico