As fortes restrições para compra de terras rurais por estrangeiros no Brasil não têm impedido que investidores de variadas nacionalidades adquiram ou explorem economicamente imóveis no campo, da mesma forma que não têm inibido operações de fusões e aquisições de empresas que contam com propriedades rurais entre seus ativos.
Ao mesmo tempo em que aguardam o afrouxamento das regras, grupos internacionais como a chinesa State Grid e a canadense Brookfield encontraram saídas para contornar a dificuldade, que variam não apenas na forma, mas também em termos dos riscos jurídicos assumidos. Compra de debêntures conversíveis em ações, contratos de parceria rural e até alterações nos limites das áreas urbanas das cidades são algumas alternativas no cardápio.
Advogados dos principais escritórios de direito empresarial dizem que desde 2010, quando a Advocacia-Geral da União (AGU) publicou parecer em que equipara empresas locais controladas por estrangeiros a empresas estrangeiras, passaram a alertar seus clientes para os riscos envolvidos em operações de fusões e aquisições da qual fazem parte terras em zona rural.
Além da propriedade do imóvel em si, o arrendamento também é restrito para os estrangeiros. Em ambos os casos, o controle é feito pelo Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra), que pode autorizar ou não a operação. Como o órgão não tem um prazo legal para dar a resposta e o processo pode levar anos, grupos estrangeiros preferem adotar estruturas que os dispensem da autorização.
“O investidor estrangeiro pode conviver com um grau maior ou menor de risco”, disse o sócio de um grande escritório que costuma sugerir estruturas mais conservadoras. Já um concorrente seu faz uma distinção entre a compra de propriedades rurais, em que o interesse principal é a valorização ou exploração da terra diretamente, e a aquisição de uma empresa que tem, entre outros ativos, imóveis em área rural por alguma razão.
“A compra da terra será barrada no cartório de registro de imóveis, mas a compra de empresas nem mesmo envolve um órgão fiscalizador específico. Nossa recomendação é para que o estrangeiro compre a empresa e corra o risco de um questionamento. Nunca vi acontecer”, disse esse advogado.
Um caso recente de venda de empresa com ativo rural é o da Eldorado Brasil Celulose, a fabricante de celulose da família Batista colocada à venda depois da delação premiada dos controladores. Como a fábrica em Três Lagoas (MS) está em zona rural, os grupos que analisaram o ativo tiveram que estudar alternativas. Um dos grupos considerou fazer a cisão do imóvel e alugá-lo dos Batista ou de outro investidor que concordasse em ficar com a propriedade. Por ora, o controle da Eldorado permanece com os Batista, mas a indonésia Paper Excellence deverá assumir a companhia em 2018. Procuradas, a Eldorado e a Papel Excellence não comentaram a solução que será adotada.
Em casos semelhantes ao da Eldorado, desde que o imóvel atenda a determinados requisitos, advogados sugerem que a prefeitura seja procurada para se requerer a mudança do zoneamento. “Para as prefeituras é interessante, porque a empresa passa a pagar IPTU. Mas para a empresa os custos sobem, entre outras coisas, porque o IPTU é bem mais caro que o ITR”, diz um advogado. A alteração, entretanto, pode levar de meses a anos.
Na compra da CPFL Energia pela chinesa State Grid, concluída em janeiro deste ano, a questão das terras rurais deu trabalho. A elétrica tinha dezenas de arrendamentos de terras e eles tiveram que ser alterados para contratos que permitem o uso da terra sem que a empresa tenha a propriedade ou a alugue. Algumas das opções que costumam ser sugeridas por advogados são direito de superfície, usufruto e parceria rural. Procurada, a State Grid informou que o tema deveria ser respondido pela CPFL, que por sua vez não quis se manifestar.
Quando o comprador da empresa ou das terras quer ter direitos mais próximos ao de um controlador, dois instrumentos costumam ser usados. Um deles é a compra de debêntures conversíveis em ações. Uma das empresas estrangeiras que adota o mecanismo é a canadense Brookfield, com vastos investimentos no País em áreas variadas.
Em janeiro deste ano, a Embaúba, empresa que detém participações em outras companhias proprietárias de imóveis rurais, emitiu R$ 1.852 bilhão em debêntures que têm sido progressivamente compradas por um fundo gerido pela Brookfield, o Agriculture Fundo de Investimento em Participações Multiestratégia.
Com vencimento em 2029, os papéis têm como remuneração um percentual de 98,79% do lucro líquido da Embaúba, sem qualquer pagamento de juros. Além disso, uma das cláusulas da debênture, à qual o Valor teve acesso, prevê que os títulos se transformarão em ações da Embaúba tão logo haja permissão para aquisição de imóvel rural no Brasil por estrangeiro. A debênture dá direito a uma participação no capital também de 98,79% da Embaúba.
É comum também que as debêntures deem ao investidor estrangeiro poderes na gestão da companhia e na decisão de políticas estratégicas. No caso da Brookfield, Luiz Ildefonso Simões Lopes, Presidente da Brookfield Brasil, é também o presidente da Embaúba. Outros executivos do grupo canadense compõem a diretoria da companhia emissora dos títulos.
Procurada, a Brookfield afirmou que “respeita integralmente a legislação do país, inclusive quanto a eventuais necessidades de aprovação prévia por parte de qualquer autoridade”.
As debêntures não são uma novidade para investimentos em setores nos quais o controle estrangeiro é proibido. Os papéis de renda fixa já foram usados, por exemplo, para a entrada de recursos internacionais em hospitais no Brasil, quando ainda existiam restrições ao capital estrangeiro. Em 2010, esse instrumento foi utilizado quando o banco BTG Pactual, com participação de capital estrangeiro, fez um investimento na Rede D’Or, de hospitais.
Os advogados que têm auxiliado estrangeiros na montagem dessas soluções para o investimento em terras se dividem sobre o uso das debêntures. Enquanto alguns recomendam seu uso, outros dizem o contrário. “Nós não aconselhamos, porque pode ser considerada uma simulação e levar a penalidades”, diz o sócio de um grande escritório de advocacia.
No caso do investimento em terras por meio da compra de debêntures, um dos riscos é que a propriedade efetiva do imóvel não fica nas mãos do investidor. Por isso os estrangeiros precisam sair em busca de um parceiro local da sua confiança, que exerça o controle acionário. Na Brookfield, executivos no Brasil são sócios de algumas das empresas que emitem a debênture. Em outros casos, os sócios das empresas das quais a Brookfield compra papéis não guardam relação com a gestão do grupo canadense no Brasil.
Outro caminho utilizado pelos estrangeiros é a aquisição de ações preferenciais, sem poder de voto. Em outubro do ano passado, o Teachers Insurance and Annuity Association of America (TIAA, fundo de pensão dos professores americanos) aumentou sua participação na Radar, empresa de propriedades agrícolas fundada pela Cosan, numa transação de R$ 1.1 bilhão
Como resultado do negócio, o TIAA passou a deter 100% das ações preferenciais da companhia que faz a gestão de 280.000 hectares no Brasil, enquanto a Cosan possui a maioria das ações ordinárias. Isso dá à TIAA uma participação econômica de 97% na Radar, apesar de o controle permanecer com a Cosan.
No caso de florestas de eucalipto ou teca, o mecanismo mais usado é a criação de duas empresas, uma dona das terras e outra operacional. A propriedade rural fica na mão de uma empresa controlada por brasileiros, e o direito de superfície é cedido a uma empresa de capital estrangeiro que opera a propriedade. Isso é possível, diz um advogado, porque o ativo biológico (árvores) tem mais valor que a própria terra, o que não acontece em terras para cultivo agrícola. Mas já houve ao menos um caso em que o Incra desconsiderou o direito de superfície e não concedeu o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR).
A restrição já criou dificuldades até para bancos estrangeiros que aceitam terras rurais como garantia de empréstimos. Uma decisão judicial liberou a alienação fiduciária desses imóveis da aprovação do Incra.
Uma das queixas mais comuns de representantes de investidores estrangeiros diz respeito ao prazo que os processos levam para obter uma resposta, seja positiva ou negativa. O Incra, reconhecem advogados, tem uma estrutura muito pequena para dar conta do volume de trabalho nessa área.
Responsável pela coordenação do cadastro rural do Incra, Paulo Farinha afirma que a avaliação dos casos pode levar de meses a anos. “A análise não depende só da governança do Incra, depende de cada órgão que verifica o plano de exploração [da terra]”, afirma ele. Para receber o sinal verde para fechar uma aquisição, o estrangeiro precisa submeter à análise de algum ministério, como Agricultura e Turismo, um plano de uso do imóvel rural.
No dia 14/12, o Incra publicou uma instrução normativa que tem como objetivo, segundo Farinha, dar mais agilidade à análise dos casos. O documento descreve de forma mais detalhada quais documentos e informações precisam ser prestados pelo investidor, como custo de implementação, cronograma e uso de crédito oficial.
Não existe, porém, uma previsão nessa instrução normativa de prazo para a análise dos investimentos. Só em caso de indeferimento é que há a previsão de um cronograma que dá ao investidor 15 dias para recorrer e depois 30 dias para o Incra julgar.
Questionado sobre como o Incra vê o uso de instrumentos alternativos para o investimento estrangeiro em terras, Farinha disse que atuação do Incra se restringe ao controle e ao arrendamento, conforme prevê a lei.
Está na agenda do governo modificar as restrições. O Projeto de Lei 4.059 está parado na Câmara dos Deputados e há expectativa de que possa avançar em 2018. Para os estrangeiros, se o texto for aprovado, isso representará o fim da imposição de um limite de área para o investimento em imóvel rural sem aprovação de órgãos reguladores ou do Congresso. As restrições só continuarão existindo para a área total de um município. A tendência é que aquisições por fundos soberanos, organizações não governamentais com sede no exterior e estatais estrangeiras sejam proibidas.
Fonte: Valor