Nivaldo Evaristo Davoglio ensina que, nesta época do ano, o estresse hídrico faz bem aos pomares. Beneficia a florada e pode ser o prenúncio de uma safra de laranja melhor. Mas até certo ponto. Aos 77 anos, o produtor, que se dedica à citricultura desde 1972, está preocupado. Há 60 dias não chove nas fazendas da família em Taquaritinga, Cândido Rodrigues, Borborema, Arialva e Cafelândia, no interior paulista, e as 300 mil árvores espalhadas pelas propriedades sentem a falta de água. Em Taquaritinga, onde Davoglio recebeu o Valor na terça-feira passada, frutas secas já começavam a se acumular sob a poeira levantada por rajadas curtas e fracas de vento, e o céu claro não parecia disposto a mudanças.
A seca aperta para lembrar os produtores da maior região citrícola do mundo que mesmo uma safra próxima da ideal tem seus percalços. Depois da quebra provocada pelas intempéries do El Niño em 2016/17 no cinturão formado por São Paulo e Triângulo Mineiro, esta temporada 2017/18, cuja colheita começou no segundo trimestre, deverá terminar em dezembro, apesar da atual estiagem, com aumento de quase 50% da colheita de laranja.
Como as grandes indústrias de suco que lideram a demanda no polo buscam recompor exportações e estoques, boa parte das frutas já foi negociada em contratos firmados a preços bem acima da média dos últimos anos, e as benesses chegam até os colhedores, que têm mais vagas de trabalho disponíveis e salários melhores.
“Em anos recentes de supersafra, tinha laranja, mas não tinha preço. No ano passado, tinha preço, mas não tinha fruta. Neste ano tivemos as duas coisas, mas a janela já começou a fechar”, disse Davoglio. Antes do início da colheita das variedades precoces desta safra, diz, as grandes indústrias, Citrosuco, Cutrale e Louis Dreyfus, chegaram a oferecer R$ 27,00 pela caixa de 40,8 quilos aos produtores independentes, em contratos de um ano. Mas no mercado spot a média atualmente já recuou para entre R$ 18,00 e R$ 20,00, patamar que não cobre os custos dos citricultores menores ou menos eficientes.
Com os contratos, as indústrias cobrem cerca de 40% de suas necessidades; outros 40% vêm de seus próprios pomares, e os 20% restantes são comprados no mercado spot. Com a quebra de 2016/17, as grandes exportadoras viram seus embarques caírem abaixo de um milhão de toneladas equivalentes ao produto concentrado e congelado (FCOJ). Pela primeira vez desde a temporada 1991/92, os estoques desceram para 107 mil toneladas no fim de junho, nível historicamente baixo, e o balanço global ficou descalibrado, já que o Brasil responde por mais de 80% das exportações mundiais.
A conjunção tornou fruta e suco mais valiosos, e é natural que, diante da reação da oferta em curso, a situação tenha começado a voltar ao “normal”, inclusive com forte baixa das cotações da commodity na bolsa de Nova York. De qualquer forma, o crescimento da colheita e os valores mais elevados dos contratos de fornecimento serão suficientes para provocar um aumento do valor bruto da produção de laranja no país para mais de R$ 13 bilhões em 2017, segundo o Ministério da Agricultura, e um incremento das exportações para pelo menos 1.1 milhão de toneladas na safra 2017/18, com receita mais próxima dos US$ 2 bilhões.
O problema é que, em condições “normais”, a atividade se tornou inviável para milhares produtores independentes na última década, quando a oferta mundial de suco foi maior que a demanda e pressionou para baixo os preços da commodity e da fruta. O custo cresceu com o agressivo avanço da doença conhecida como “greening”, causada por uma bactéria, e a conta de boa parte dos pequenos e médios citricultores passou a não fechar. O próprio Nivaldo Davoglio conteve os investimentos na atividade. Elevou a aposta na pecuária e arrendou parte das terras para produtores de cana, trilha seguida pela maior parte dos agricultores que abandonaram a laranja no cinturão nos últimos anos.
A cidade de Matão, vizinha a Taquaritinga, está entre os que viram o número de citricultores despencar. Segundo Pedro Azevedo e Sergio Ferreira, gerentes do Sindicato Rural de Matão, cerca de 280 pequenos e médios produtores de laranja do município estão aproveitando a boa safra atual, um número 90% menor que há dez anos. Dominante desde os anos 1960, a fruta perdeu espaço, sobretudo para os canaviais plantados em terras arrendadas, mas também para o gado, para outras frutas e mesmo para o milho safrinha. “A produção de laranja está cada vez mais concentrada. A pressão das indústrias nas negociações de preços é grande e os investimentos necessários para manter a atividade aumentam a cada ano”, disse Ferreira.
Em uma das fazendas da Citrosuco, localizada na confluência entre Gavião Peixoto e Boa Esperança do Sul, um exército de funcionários mostra que os desafios de fato se multiplicaram. A propriedade abriga mais de um milhão de árvores de laranja, que todos os dias são passados em revista para que o greening seja mantido sob controle. Se identificado um pé com a doença, a erradicação é imediata, e todos os dias algumas árvores são arrancadas, desfalcando as fileiras perfeitas dispostas até perder de vista.
Enquanto os fiscais checam de perto pé por pé, turmas de colhedores depenam árvores atrás de árvores, enchendo sacas depois de sacas em altíssima velocidade. Tratores carregam as frutas para grandes “bins” elevados, e sob esses silos caminhões são carregados para transportá-las até a indústria da companhia em Matão, que, com 180 extratoras de suco. É a maior do planeta.
Rogério Aparecido Milan lidera uma das turmas de colhedores da fazenda da Citrosuco em Gavião Peixoto, onde trabalha desde 1992, tempo em que seu pai também participava da colheita. Formado por 54 pessoas, seu time é considerado um dos mais eficientes da região. Milan é contratado pela empresa em regime temporário. Sua equipe vem de Estados do Nordeste, principalmente Piauí e Maranhão, e conta com um núcleo de apoio ao migrante da Citrosuco, que oferece alojamentos e assistência social. Cada um chega a colher 60 caixas de 40,8 quilos por dia (são 44 horas de trabalho por semana). A depender do desempenho, o trabalhador consegue ganhar, nesta safra, até R$ 2.000,00 por mês.
Segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) compilados pela CitrusBR, entidade que representa as três grandes indústrias exportadoras de suco, pouco mais de 45 mil pessoas foram admitidas na citricultura de São Paulo e Minas de julho de 2016 a junho último. E relatos de representantes de sindicatos de trabalhadores e prefeituras indicam que a maior parte deles foi formada por cidadãos das próprias regiões citrícolas, não migrantes.
“Estávamos com 10 mil desempregados de uma população ativa de 55 mil pessoas antes do início da colheita. Daí porque as contratações da citricultura se concentraram em gente daqui mesmo”, disse Hudson Martins, secretário de Planejamento e Desenvolvimento Econômico de Matão, município brasileiro com maior saldo líquido de empregos em julho, também em função de uma relativa reação de seu polo de metalurgia. Segundo Martins, puxadas pelo suco, as exportações da cidade já superaram US$ 600 milhões neste ano.
Barreiras à mecanização ‘preservam’ trabalhador
A colheita de laranja ainda consegue responder por boa parte dos empregos criados nesta época do ano nos municípios do cinturão citrícola que se espalha pelo centro-norte de São Paulo e pela região do Triângulo Mineiro em boa medida, graças à dificuldades que os produtores enfrentam para mecanizar a atividade.
Marco Antonio dos Santos, presidente do Sindicato Rural de Taquaritinga, afirma, no entanto, que os esforços nesse sentido continuam, e que se multiplicam os testes, sobretudo nos pomares próprios das grandes indústrias exportadores de suco de laranja (Citrosuco, Cutrale e Louis Dreyfus), que têm mais capital para investir.
O grande obstáculo, explica Santos, é que em uma mesma árvore de laranja, graças às diferentes épocas de florada, há frutas em estágios de maturação distintos. Uma máquina “derrubadora de frutas”, por exemplo, pode gerar prejuízo, já que não distingue as laranjas que estão no ponto certo das pequenas e verdes.
Dilce Lopes Maciel, presidente do Sindicato dos Empregados Rurais do mesmo município, lembra que, nos canaviais, a história foi diferente. Era outra atividade intensiva em mão-de-obra na região, mas com o avanço da mecanização nos últimos anos deixou de ser importante nessa frente.
Segundo Santos, os condomínios de colhedores de laranja deixaram um rastro de problemas judiciais e, hoje, os trabalhadores são contratados diretamente pelos produtores. No sindicato presidido por Dilce, 400 colhedores receberam assistência e/ou atendimento médico este ano.
Fonte: Valor Econômico