Por muitos anos, Dirceu Aparecido Nascimento foi o único a madrugar com o pai para, às 4h00 da manhã, começar a arar a terra de onde retirava as cebolas que garantiam o seu sustento. Estava conformado com a dureza da vida no campo, que aos poucos empurrou os quatro irmãos para a cidade. Mas a chegada da tecnologia – primeiro as estufas e, mais tarde, o trator de 75 cavalos – animou Marcelo, Márcio, Vanderleia e Renata a retornar à pequena propriedade rural em Piedade, no interior paulista. “Pra mim”, afirma Dirceu, “o melhor de ter crédito foi poder trazer a minha família de volta”.
Os Nascimento são uma das 2,6 milhões de famílias beneficiadas pelo Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), criado há quase duas décadas pelo governo federal para tentar encerrar a histórica dificuldade de acesso ao crédito do estrato mais pobre – e também o mais representativo – da pirâmide rural brasileira.
Em seis anos, a família paulista conseguiu levantar R$ 155 mil por meio de quatro operações, a juros de 2,0% ao ano e carência de três anos para começar a pagar. O primeiro empréstimo, de R$ 10 mil, foi para o custeio da produção. O último, no ano passado, subiu para R$ 89 mil, o preço do trator novinho estacionado na entrada do Sítio Boa Esperança, agora agitado com o vai-e-vem de irmãos entre dezenas de caixas de tomates e outras hortaliças que seguirão viagem à Ceagesp, na capital.
Como muitos agricultores familiares, os Nascimento dizem que a vida mudou com o Pronaf. Com a família reunida e maquinário, o trabalho sob o calor escaldante do interior ficou um pouco mais fácil. Descontados os custos fixos com a propriedade de 12 hectares, “sobra até uma coisinha no fim do mês”, diz Dirceu. A “coisinha” chega a R$ 5 mil mensais, para cada irmão, no período de verão, quando as vendas são melhores. Mais do que Marcelo e Márcio ganhavam na cidade. E algo impensável na pequena agricultura uma década atrás.
Não seria arriscado dizer, portanto, que a família Nascimento representa uma espécie de nova classe média alta no espectro de agricultura familiar brasileira. Pelos padrões do Pronaf, trata-se do agricultor com renda bruta anual acima de R$ 30 mil. É também o que a Emater, entidade de assistência técnica rural, qualifica como “agricultor de mercado”: com atividade comercial definida, capacidade de poupança (em geral animais), acesso ao crédito, meios de produção individuais e que eventualmente contrata ou troca serviços com outras famílias.
Não se sabe ao certo quantos brasileiros entraram nessa categoria. A falta de um censo agropecuário atualizado – o último é de 2006 – impede o balanço da influência do programa na melhora das condições de vida e seu impacto na migração rural. Os sistemas do Banco Central e bancos repassadores do Pronaf tampouco estão preparados para coletar a evolução patrimonial e de renda das unidades familiares de produção – falha que o governo admite.
“O crédito facilita o acesso a tecnologias que são decisivas no aumento da produtividade e, por consequência, da renda. Essa evolução acontece, sabemos, mas não temos hoje como medir esse ganho”, diz João Luiz Guadagnin, diretor de financiamento e proteção à produção da Secretaria de Agricultura Familiar, do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
Empiricamente, são as dezenas de centenas de relatos pessoais, aqui e ali, que apontam para uma mudança em curso no campo.
Estatisticamente, o que sugere essa guinada é a linha de evolução nos empréstimos. Entre os anos-safra 2003/04 e 2013/14, os valores financiados subiram de R$ 3,4 bilhões para R$ 22,3 bilhões, enquanto os contratos cresceram de 1,1 milhão para 1,9 milhão. No acumulado de sete meses da safra 2014/15, que se encerra em setembro, já foram mais R$ 16,5 bilhões de um total previsto de R$ 24,1 bilhões. Para efeito de comparação, os recursos para a agricultura empresarial somaram R$ 156 bilhões na mesma temporada.
O que chama a atenção nessas operações, no entanto, é o tipo de empréstimo que o pequeno agricultor passou a demandar. Segundo o MDA, houve uma migração de necessidades, com recuo nos pedidos de custeio e alta nos de investimento – basicamente para a compra de tratores, sementeiras, colheitadeiras e ordenhadeiras.
Repaginado para “Mais Alimentos” em 2008, o crédito específico para compra de máquinas superou todas as demais modalidades de crédito oferecidas pelo Pronaf, que incluem linhas para mulheres, jovens e agricultura sustentável.
Segundo a Anfavea, associação que representa as indústrias de veículos e máquinas agrícolas, a comercialização de tratores com até 80 cavalos de potência, ideal para pequenos agricultores, representou 51% do total vendido em 2014, frente aos 42% em 2013.
“De cinco anos para cá, o crédito para investimento tem ocupado posição mais importante que o de custeio no Pronaf, o que significa que a agricultura familiar está se capitalizando e investindo em coisas de longo prazo”, afirma José Garcia Gasques, coordenador-geral de Planejamento Estratégico do Ministério da Agricultura.
Gasques cita os dados de Valor Bruto da Produção (VBP) como mostra dessa melhora. Em 2014, o VBP, que é o resultado de tudo o que é produzido no país, fechou em R$ 463,9 bilhões. Na pecuária leiteira, dominada pela agricultura familiar, o avanço do VBP foi de 8%. No setor de aves, onde 51% da produção também é familiar, a alta foi de 12%.
Desde que foi criado, o Pronaf atingiu metade das 4,3 milhões de famílias enquadradas no programa. Por lei, está apto a captar crédito o produtor com área de até quatro módulos fiscais (métrica que varia de 100 hectares na Amazônia a 25 hectares no Sul) e que dependa da terra para o seu sustento.
Mas são famílias como a de Nascimento as responsáveis pelo maior volume e número de operações. Apesar dos avanços nacionais, o crédito continua concentrado nos Estados mais ricos e com forte tradição de cooperativismo, longe do que o imaginário popular associa à produção remota de subsistência atendida pelo Pronaf.
O Rio Grande do Sul tem liderado as captações de crédito do Pronaf. Na safra 2013/14, abocanhou R$ 5,2 bilhões do total de R$ 22,3 bilhões liberados. O Paraná captou R$ 3,2 bilhões. Santa Catarina e Minas Gerais ficaram com R$ 2,6 bilhões cada. Na contramão, 13 Estados, concentrados no Norte e no Nordeste, responderam por menos de 1% dos empréstimos.
O contexto histórico ajuda a explicar parte desse cenário. Sem titularidade da terra, isolados geograficamente e sem acesso à informação, o processo de bancarização desses agricultores ficou para trás se comparado à media do país. A extensão rural abrangente – uma promessa do governo Dilma Rousseff – é praticamente inexistente nos rincões do Brasil e em regiões do Centro-Sul. No Rio Grande do Sul, por exemplo, 24% das 370 mil famílias ainda são consideradas como agricultura de subsistência, onde os meios de produção são os mais precários.
A ausência de documentação também tem feito com que muitos agricultores optem por contrair empréstimos mais caros, fugindo do Pronaf. Em Piedade, o entrave tem sido a falta de outorga de água para irrigar o plantio de hortaliças, o forte da produção do município.
“A outorga é cara e leva quatro meses para sair. Pra gente que planta, não dá pra esperar”, diz Diogo Werner, produtor de alfaces. Para muitos não dá sequer para pagar – dependendo o volume de água captada e da área da propriedade, a autorização pode custar R$ 5 mil, o equivalente à renda bruta dos menores produtores.
Sem outorga, os bancos estão impedidos de conceder crédito via Pronaf. Sem opção, Werner diz que recorreu ao Finame, com juro mais alto, para comprar um trator. “No Pronaf é muita burocracia”, diz ele. “Não é para os muito pequenos”.
Essa combinação de fatores não só freia o número de projetos no campo (e o crédito para colocá-los em prática) como pode ampliar o fosso econômico-social entre as diferentes denominações de produtor resguardadas debaixo do guarda-chuva da agricultura familiar.
Guadagnin, do MDA, concorda que questões como essas dificultam o avanço mais rápido do Pronaf, mas defende que o governo está atento e agindo. Ele não vê a outra metade não atendida (pouco mais de 2 milhões de famílias) como meta. “Há uma parcela da agricultor familiar que não demanda e nunca vai demandar crédito. São aposentados ou gente que tem resistência a tomar crédito, mas que não precisa dele”. O cenário mais realista, diz ele, seria tentar alcançar somente mais 300 mil famílias.
Fonte: Valor Econômico