Usinas já veem oportunidade com carro elétrico

Já faz quase quatro décadas que o Brasil usa o etanol como alternativa aos combustíveis fósseis. Agora, essa mesma busca por meios de transporte menos agressivos ao ambiente começa a levantar dúvidas sobre o futuro do biocombustível. O adversário é o carro elétrico, que ameaça a cadeia de fornecimento de combustíveis ao usar motores movidos a baterias em vez dos tradicionais a combustão.

A briga no Brasil pode demorar. A expectativa, entre analistas do setor, é que só daqui a 12 anos os veículos a eletricidade terão uma presença consistente no país. Mas a indústria sucroalcooleira, que vendeu R$ 45 bilhões em etanol na safra 2016/17, já estuda estratégias para não ficar fora do jogo. Uma das esperanças é participar do desenvolvimento dos carros movidos a célula de combustível.

Ao contrário do que ocorre em outros países, o governo brasileiro não sinaliza com programas de incentivo para aquisição de modelos elétricos. Isso pode dar uma sobrevida aos motores a combustão. Mas, como aos poucos as montadoras vão abandonar essa tecnologia, as previsões indicam que por volta de 2030 o elétrico será comum também no Brasil.

Num futuro mais distante, porém, a eletrificação da frota pode incluir o etanol, caso o desenvolvimento do automóvel movido à célula de combustível avance. Nesse tipo de carro, que substituirá o elétrico com baterias, o “combustível” é o hidrogênio. O abastecimento de hidrogênio poderá ser num posto, mais complicado e caro, ou a partir de outro combustível. Uma reação química gera energia no próprio carro.

A boa notícia para os usineiros brasileiros é que, segundo o engenheiro Henry Joseph Jr, diretor técnico da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), testes nesses modelos já comprovaram que o etanol rende mais que gasolina ou gás. Além disso, esses veículos terão a vantagem de aproveitar a atual rede de distribuição, além de emitir menos gases de efeito estufa.

Mas, segundo Marco Saltini, vice-presidente da Anfavea, mesmo nos países mais desenvolvidos, o carro movido a célula de combustível não estará disponível em menos de 15 anos.

Fora do Brasil, a Nissan já testa veículos movidos a célula de combustível usando etanol. Segundo a empresa, com o derivado da cana, o veículo alcança mais autonomia. O carro testado utiliza entre metade e um terço da quantidade de etanol usado num a combustão com o mesmo combustível. A empresa promete, para 2020, a adição de 55% de água no tanque, o que reduzirá ainda mais a necessidade de etanol.

No Brasil, espera-se também que o automóvel híbrido anteceda a chegada do elétrico. Para a presidente da União das Indústrias de Cana-de-Açúcar (Unica), Elizabeth Farina, os híbridos podem tornar o biocombustível uma “tecnologia de transição” para a eletrificação. Já vendido no Brasil, o híbrido tem dois motores. O que funciona com combustível gera a energia necessária para o elétrico entrar em ação quando o trajeto é de baixa velocidade, como nos centros urbanos.

A Toyota já demonstrou interesse em produzir híbridos movidos a etanol no Brasil. “É fácil converter o motor a gasolina do híbrido para etanol”, disse Joseph Jr. Nos bastidores, sabe-se que o setor tem a expectativa de receber incentivos fiscais para colocar o projeto do híbrido com etanol em prática.

Luis Roberto Pogetti, presidente do conselho de administração da Copersucar, concorda que haverá uma evolução tecnológica em 10 a 15 anos. Ele estima, entretanto, que qualquer mudança demorará para provocar impacto no conjunto da frota brasileira. “Somos um país pobre”, disse. Sem estímulos à renovação, os carros eletrificados conviverão com os velhos movidos a combustão por muitos anos.

É certo, porém, que a mudança deve impactar diretamente os investimentos das usinas, que já vêm à mingua há alguns anos. Pogetti lembra que qualquer investimento no setor sucroalcooleiro precisa de um horizonte de ao menos dez anos.

Mas nem por isso o setor está imóvel. Fabio Venturelli, presidente do grupo São Martinho, lembra que as usinas já operam em outros segmentos, como cogeração de eletricidade e açúcar. Segundo o executivo, há ainda espaço para outros derivados da cana, como plástico, vacinas e vitaminas. Mas, para ele, a substituição total da frota no Brasil por veículos elétricos é um cenário “utópico”.

Para o futuro dos grupos estrangeiros que vieram ao país, o cenário é distinto. A americana Bunge, por exemplo, já indicou que não pretende seguir no segmento por muito mais tempo. Já a chinesa Cofco, está menos preocupada com as mudanças iminentes, dado que seu maior interesse está na produção de açúcar e em cogeração. “Etanol não é nosso foco”, disse Marcelo Andrade, presidente global de açúcar da Cofco.

A história do carro a etanol sempre foi marcada pela falta de competitividade em relação aos preços da gasolina. “O etanol oferece vantagem em relação ao elétrico se a geração da energia for numa termoelétrica. Mas o Brasil sempre patinou na questão do preço”, disse Joseph Jr.

O primeiro carro a álcool no país foi produzido em 1979. Mas problemas com preço arruinaram o Proálcool na década de 1990. Mais tarde, em 2003, o etanol voltou a ganhar credibilidade com o surgimento do motor flex, que permite usar, no mesmo tanque, gasolina e etanol. Hoje, o derivado da cana representa mais de 30% do consumo de combustíveis no Brasil, incluindo a parte que é misturada à gasolina.

Enquanto a Volvo anuncia que todos os seus carros terão motor elétrico a partir de 2019, para alguns, o derivado da cana, assim como a gasolina e até o diesel, têm chances de continuar a mover os veículos numa fase de transição que tende a ser mais longa em certas regiões, como o Brasil ou em cidades europeias afastadas dos centros urbanos.

Para Ricardo Abreu, conselheiro da Associação dos Engenheiros Automotivos (AEA), cada país vai se adaptar conforme a disponibilidade de combustíveis. Entre 2019 e 2022, toda a linha de produtos da francesa Peugeot vai oferecer motores a combustão, híbridos e elétricos.

“Cada país vai decidir como será sua transição; o ritmo da eletrificação não será o mesmo em todos os lugares”, disse o presidente mundial da empresa, Jean Philippe Imparato. “Em Paris, por exemplo, você não poderá circular em carro daqui a dois anos se o motor não for elétrico. Mas o mesmo não vale para o sul da França”.

“A eletrificação dos carros chegará um dia e isso não se discute. Mas o etanol merece uma discussão à parte”, disse o presidente da Mercedes-Benz na América do Sul, Philipp Schiemer. “O balanço dos gases emitidos na geração de energia elétrica não é tão fantástico e o etanol no mínimo empata”. Para ele, o etanol é uma alternativa para o Brasil, “mas carece de ‘lobby’, de uma explicação melhor do seu potencial”.

Executivos e especialistas do setor sucroalcooleiro ressaltam também que uma adoção do carro elétrico a bateria no Brasil demandaria um investimento sem precedentes em infraestrutura de produção e distribuição de energia.

Segundo Plinio Nastari, presidente da consultoria Datagro, em 2016, a frota de veículos leves do Brasil consumiu em combustíveis o equivalente a 462.000 gigawatts-hora (GWh), enquanto o consumo por indústrias e residências foi praticamente igual, de 460.000 GWh.

Se a opção por híbridos ou movidos por células de hidrogênio for adotada no Brasil, as usinas poderão manter ou até ampliar presença no setor de energia, disse Nastari. “No longo prazo, é provável que o aumento da demanda por etanol e bioeletricidade seja maior que por açúcar”.

A Volkswagen planeja importar o Golf elétrico da Alemanha. “Mas antes temos que ter absoluta certeza de que haverá estações de carregamento”, disse o presidente da Volks na América do Sul, Pablo Di Si. “O custo das baterias do elétrico caiu 70% nos últimos três anos. Mas ainda há, no mundo, fortes subsídios para esse tipo de veículo. Por isso, os modelos flex continuarão por um bom tempo”, disse.

Os principais centros de engenharia de veículos já começam a abandonar o desenvolvimento de motores a combustão. Ao mesmo tempo, tecnologias para um futuro mais longo abrem espaço para a sobrevivência do etanol. A questão é saber o quanto da atual infraestrutura brasileira dedicada ao abastecimento veicular será necessária.

 

Fonte: Valor Econômico

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