Após pelo menos quatro safras marcadas por expressivas valorizações de commodities fundamentais em seus negócios, as quatro mais importantes multinacionais do agronegócio deram partida em setembro ao primeiro de pelo menos dois ciclos que deverão ser guiados por preços mais baixos. Mas, mesmo para quem domina o comércio de matérias-primas como milho, trigo, soja, algodão e cacau, o cenário não é necessariamente negativo, já que pode abrir espaço para uma desejada ampliação tanto da rentabilidade das operações de processamento quanto da produção de itens de maior valor agregado.
Para ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus, ajustes de rota derivados de mudanças nas tendências de preços nem de longe podem ser considerados uma novidade. A “ABCD”, como é conhecido o grupo, em boa medida assumiu a importância que têm como tradings por causa dessas guinadas. Não são poucos os riscos nesse tipo de operação, e essas companhias, cuja receita líquida conjunta superou US$ 350 bilhões em 2013, cresceram da forma como cresceram desde o século XIX por terem gás para absorvê-los.
Desde que essas empresas foram criadas, houve duas grandes guerras mundiais, décadas de tensão entre Estados Unidos e a antiga União Soviética, uma revolução na China e dezenas de outros eventos que tiveram influência direta sobre suas atividades – o mais recente é a tensão entre Rússia e Ucrânia e as sanções e embargos comerciais associadas a ela. Mas seus negócios prosperaram, a ponto de colaborar para o equilíbrio da oferta global de alimentos. Só que com tamanha influência sobre preços que, não raro, o quarteto se viu na berlinda ou na mira de autoridades antitruste ou tributárias.
É fato que as empresas saíram de muitas dessas crises mais fortalecidas; mas, de outras, os reflexos em seus resultados foram negativos. Daí a eterna busca por um portfólio capaz de amenizar as oscilações das commodities e garantir melhores rentabilidades, uma vez que obter margens de 5% em operações de comercialização (trading) já pode ser considerado uma vitória. O tempo passou e são quase infinitas as transformações que tiveram impacto nos negócios dessas múltis. Mas, por mais diferenças que guardem entre si, seus objetivos pouco mudaram.
“Temos uma função no mercado. O mundo está conectado e há clientes para abastecer o tempo todo. Hoje e sempre, somos uma empresa de originação, processamento, transporte e entrega, e a logística pesa muito em nossos negócios. Só de grãos, movimentamos mais de 100 milhões de toneladas por ano. Temos que buscar, permanentemente, novas possibilidades em diferentes regiões do mundo, e por vezes o mercado ‘se desloca’ em razão de problemas em origens ou destinos”, diz Raul Padilla, presidente da Bunge Brasil desde maio.
Nesse contexto, diz o executivo argentino, que era diretor global da divisão “Agribusiness” da Bunge antes de assumir o comando da subsidiária brasileira, o objetivo é ampliar “de forma integrada”, para entre 30% e 35%, a participação da divisão “Food & Ingredients” nas vendas totais nos próximos anos. É a área onde estão abrigados os produtos de maior valor agregado, que hoje respondem por 20% da receita. “Agribusiness”, que inclui as operações de trading, ainda costuma representar 80% do faturamento. “Mas ‘Agribusiness’ é o nosso ‘core business’ e temos que continuar crescendo nessa frente”.
No trimestre encerrado em 30 de setembro (o terceiro do exercício 2014), a queda das cotações dos principais grãos e seus reflexos sobre a originação na América do Sul reduziu o resultado global da divisão “Agribusiness” do grupo antes de juros e impostos (EBIT) em 41,5% na comparação com igual intervalo de 2013, para US$ 186 milhões. As vendas totais do grupo também sentiram esse efeito e recuaram quase 7% na comparação, para US$ 13.7 bilhões. Mas, com a melhora dos resultados em outros negócios, inclusive açúcar e etanol no Brasil, a companhia reverteu o prejuízo de US$ 148 milhões do terceiro trimestre do ano passado e registrou lucro líquido de US$ 294 milhões. Com a desvalorização das matérias-primas, a expectativa é de um quarto trimestre de melhores margens no processamento.
Atualmente sediada nos EUA, a Bunge é a mais “sul-americana” das ABCD. Apesar de sua origem holandesa, despontou no tabuleiro global, no século XX, depois que transferiu seu QG para a Argentina – e, mais tarde, para o Brasil, onde fincou as bases para o avanço observado nas últimas décadas. Durante a maior parte desse período de crescimento, a múlti foi comandada pelo brasileiro Alberto Weisser, que se aposentou em 2013. Não deixa de ser auspicioso para a companhia, portanto, que uma das mais importantes fronteiras de expansão para as “ABCD” continue a ser o Brasil. Não só como país produtor de commodities, o que justifica aportes bilionários em logística, mas também como mercado de consumo em expansão.
Quando esteve em junho em Campo Grande (MS) para o lançamento da pedra fundamental da segunda fábrica de proteínas de soja de alto valor agregado da ADM (a outra fica nos EUA), o presidente da múlti americana, Juan Ricardo Luciano, destacou ao Valor essa vantagem. “O Brasil é um dos poucos países do mundo onde há grande oferta para originação e um mercado consumidor expressivo”. Ele revelou, na época, que a ADM tem investido globalmente de US$ 1 bilhão a US$ 1.2 bilhão por ano e que 60% de seu “capital de crescimento” têm sido aplicado fora dos Estados Unidos, com destaque para mercados emergentes.
Em meados de setembro, foi a vez de Matt Jansen, presidente global de oleaginosas da ADM, desembarcar em Barcarena (PA) para o início das operações do novo terminal de exportação de grãos da empresa e reforçar essa mesma visão estratégica. “Não posso ficar preocupado apenas com os preços de commodities como soja e milho. Tenho, sim, que ficar atento à relação desses preços com os de farelo e óleo, por exemplo, e buscar o melhor gerenciamento de margens possível. Queremos agregar valor”, disse ao Valor na ocasião.
Não por coincidência, Jansen presidiu a subsidiária brasileira da ADM entre 1999 e 2006. Por oferecer a rara combinação entre produção e mercado realçada por Luciano, nenhum outro país tem concentrado tantos investimentos das “ABCD” para maximizar a eficiência logística das operações de comercialização e ampliar mercados para produtos de maior valor agregado quanto o Brasil – em países do Leste Europeu também há oportunidades do gênero, mas, em geral, em menor escala. Particularmente no caso da ADM, apenas os aportes na fábrica de Mato Grosso do Sul e no terminal do Pará somam mais de R$ 500 milhões e ainda poderão ser ampliados.
No quarto trimestre do exercício 2014, encerrado em 30 de setembro, a ADM, como a Bunge, registrou queda das vendas e aumento do lucro líquido. A receita caiu 15,3% em relação ao mesmo período do ano passado, para US$ 18.1 bilhões, enquanto o ganho aumentou quase 57%, para US$ 747 milhões. Com a retração dos preços do milho, que afetou as vendas, o resultado operacional das atividades de processamento do cereal, inclusive para a produção de etanol nos EUA, quase dobrou e alcançou US$ 356 milhões.
Ainda que o processamento de matérias-primas tenha, em geral, perspectivas positivas pela frente, nem sempre as condições ou o posicionamento de uma empresa em determinado mercado bastam para tornar o negócio intocável. Em setembro, a própria ADM acertou as bases para vender seu negócio global de chocolate para a Cargill, por US$ 440 milhões, e sinalizou que manterá a maior das operações de processamento de cacau e que vai reinvestir esse capital onde o retorno for mais elevado. Para a Cargill, porém, a transação representou a oportunidade de acelerar seu avanço na área de chocolate.
Paralelamente a outros investimentos envolvendo produtos de maior valor agregado, algumas apostas recentes da Cargill fortaleceram a posição da empresa nos segmentos de originação e comercialização. Em março, por exemplo, uniu suas forças com as da brasileira Copersucar e criou a Alvean, maior trading de açúcar do mundo. De qualquer forma, a companhia conta com uma linha forte de produtos de varejo – reforçada nos últimos anos, como no caso da Bunge, pelo crescimento na área de molhos de tomate – e características hoje singulares entre as “ABCD”, como o fato de ser uma das maiores produtoras de carne bovina dos Estados Unidos.
Maior empresa de agronegócios do planeta, a Cargill, com seu arraigado estilo matricial de gestão e eficientes mecanismos de gerenciamento de risco, talvez seja a mais complexa representante do quarteto mais conhecido do setor. No primeiro trimestre do exercício 2015, em meio ao declínio das cotações dos grãos, registrou lucro líquido de US$ 425 milhões, 26% menor que em igual intervalo do exercício passado, e vendas 2% menores, da ordem de US$ 33,3 bilhões. Quando divulgou esses resultados, o CEO David MacLennan destacou os esforços da múlti para acelerar as melhorias em seus processos e também destacou o desempenho da produção de etanol de milho nos Estados Unidos.
Em tempos de maior concorrência e crescimento da participação de outras tradings no comércio de commodities agrícolas, especialmente na Ásia – onde desponta a força da chinesa Cofco, por exemplo – as “ABCD” passaram nos últimos tempos por renovações em seus comandos globais. Na Bunge, Alberto Weisser foi substituído por Soren Schroder em meados de 2013, pouco antes de Greg Page ter deixado o cargo hoje ocupado por MacLennan na Cargill. No primeiro trimestre de 2014, Juan Luciano foi alçado ao posto de presidente da ADM e, ontem, a empresa anunciou que ele será seu novo CEO a partir de janeiro. A atual dona da posição, Patricia Woertz, seguirá como presidente do conselho até 2016, quando vai se aposentar. Mas ninguém passou por tantas mudanças como a Louis Dreyfus Commodities.
Com origem na Suíça e raízes na França, a LDC, após enfrentar turbulências, iniciou um processo de transição em junho de 2013 e está com seu segundo CEO interino desde então. O primeiro foi Ciro Echesortu, que em 1º de junho cedeu a cadeira a Claude Ehlinger. Mas, se ainda não foi divulgado o nome do próximo CEO, uma certeza prevalece: nunca a russa Margarita Louis-Dreyfus, que herdou o controle após a morte do marido Robert, influenciou tanto os rumos da empresa, que processa e transporta cerca de 77 milhões de toneladas de produtos agrícolas por ano. E esses rumos, comenta-se frequentemente no mercado, nunca pareceram tão incertos.
No primeiro semestre de 2014, as vendas líquidas globais da LDC somaram US$ 33.7 bilhões, 16% mais que no mesmo período de 2013. Já o lucro líquido seguiu estável em US$ 260 milhões, sempre conforme informações da companhia. Diferentemente de ADM e Bunge, que têm ações negociadas na bolsa de Nova York, Cargill e LDC são fechadas. E é também no Brasil que a múlti joga boa parte de suas fichas. Além de investir em logística, como as demais, tenta recuperar sua operação de açúcar e etanol. Ao mesmo tempo, reestrutura sua operação de suco de laranja.
Fonte: Valor Econômico