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Assunto voltou a tensionar relação do governo com setor agropecuário
No início de fevereiro, a presidência da república publicou decreto regulamentando poder de polícia da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a FUNAI. Em seu texto, o diploma legal prevê as situações em que a entidade deverá agir para prevenir eventuais ameaças ou violações dos direitos dos indígenas, além de evitar a ocupação ilegal de suas terras. Na prática, levantou controvérsias e questionamentos, levando deputados a articularem sua derrubada. O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, Pedro Lupion (PP – PR), declarou que a medida, além de “claramente inconstitucional, e uma afronta ao direito de propriedade no Brasil, usurpa a competência do Poder Legislativo”
O governo publicou o decreto em resposta à determinação do STF, adotada no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, na qual a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), ao lado de seis partidos políticos de esquerda (PT, PSOL, PSB, PDT, PCdoB e Rede Sustentabilidade) questionam a atuação da FUNAI na proteção dos territórios indígenas. Com a regulamentação, a entidade, além do poder de polícia, poderá solicitar o apoio de outros órgãos de segurança pública, desde que dentro das atribuições desses últimos, para garantir a proteção do território, patrimônio, integridade física e moral dos indígenas.
Para a bancada em defesa do agronegócio, essa decisão pode abrir brechas para atos de violência contra proprietários de terras, pois o texto não deixou claro se a atuação da FUNAI, com suas novas atribuições, será somente nas áreas que já tiveram seu processo de demarcação concluído e homologado, ou em regiões que ainda estão em estudo ou são objeto de litígio. A entidade ainda não esclareceu essas dúvidas.
Como há várias disputas judiciais envolvendo terras no país, o deputado Alceu Moreira (MDB – RS), autor de um dos pedidos de sustação do decreto, destacou que o texto instiga uma luta desnecessária entre indígenas e agricultores, colocando em risco a segurança jurídica no campo. Pelo menos outras oito propostas foram apresentadas por parlamentares, na tentativa de impedir que funcionários da FUNAI exerçam o poder de polícia. O recém – eleito presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos – PB), tem se mostrado disposto, ainda que nos bastidores, a debater o tema, de acordo com interlocutores.
Ambiguidade num tema sempre delicado e complexo
Como o procedimento demarcatório se estende por cinco fases, com sucessivos processos administrativos e contestações por parte dos proprietários das terras, o poder de polícia concedido à FUNAI pode tornar assimétrico o equilíbrio de forças num cenário já mercado por disputas agrárias e muita desinformação, como o Portal SNA vem mostrando em reportagens, artigos e entrevistas. A aprovação do Marco Temporal, que opôs Congresso, Executivo e STF em episódio ainda recente, ensinou como tensionar esse ambiente é um desserviço a todas as partes envolvidas.
Advogados especializados também divergem quanto ao polêmico poder de polícia da FUNAI. Para alguns, ele não equivale ao que existe em termos de segurança pública, não se aplicando, assim, a áreas não homologadas; outros entendem que o texto do decreto é subjetivo e pode dar margem à discricionariedade em certos casos, sem definição objetiva de critérios. Justamente para evitar essa lacuna, a FPA e outras bancadas vêm se articulando.
De acordo com o Dr. Frederico Price, Diretor Jurídico da SNA, “O Decreto nº 12.373, de 31 de janeiro de 2025, regulamentou o exercício do poder de polícia da “Fundação Nacional dos Povos Indígenas”, instituída pela Lei nº 5.371, de 5 de dezembro de 1967, a quem cabe, desde então, exercer o poder de polícia administrativa nas áreas reservadas e nas matérias atinentes à proteção do índio (art. 1º, VII).”
Para ele, “É cediço que o exercício do poder de polícia administrativa deve observar os seguintes postulados com a finalidade de preservar os direitos fundamentais individuais, a saber: “(i) da necessidade, em consonância com a qual a medida de polícia só deve ser adotada para evitar ameaças reais ou prováveis de perturbações ao interesse público; (ii) da proporcionalidade, que significa a exigência de uma relação necessária entre a limitação ao direito individual e o prejuízo a ser evitado; (iii) da eficácia, no sentido de que a medida deve ser adequada para impedir o dano ao interesse público”
Além disso, ele lembra que “Estando sub judice bens, direitos, atividades e pessoas, estes tornam-se “objeto litigioso”, o qual se subsume à jurisdição civil e penal do magistrado competente. Caberá, então, ao magistrado competente, entre outras atribuições, dirigir o processo e determinar as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias e exercer o poder de polícia, expedir mandado de prisão, requisitando, quando necessário, a força policial, através dos seguintes órgãos constitucionalmente legitimados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, a saber: polícia federal; polícia rodoviária federal; polícia ferroviária federal; polícias civis; polícias militares e corpos de bombeiros militares. polícias penais federal, estaduais e distrital (art. 144 da CF/88).”
Por fim, Frederico ilustra um caso hipotético: “Assim, por exemplo, tratando-se de bem imóvel objeto de processo judicial, presidido por magistrado, a quem incumbe, enquanto juiz natural competente (art. 5º, LIII, CF/88), a adoção, com exclusividade, de medidas e providências assecuratórias, cautelares e antecipatórias, não mais se poderá admitir a prática de qualquer inovação no estado de fato, inclusive pela polícia administrativa, sem o devido processo legal por meio de autorização judicial”.
Por Marcelo Sá – jornalista/editor e produtor literário (MTb13.9290) marcelosa@sna.agr.br