Fazia perto de zero grau na manhã da última terça na capital de Iowa, Des Moines, mas a baixa temperatura não impediu agricultores americanos de cidades a centenas de quilômetros de distância de acordar cedo para a reunião anual dos fazendeiros do estado.
Além de competições de oratória para jovens agricultores e palestras sobre novas técnicas para cultivo, algumas das sessões que fizeram sucesso focavam em melhorar o ânimo dos participantes, abatidos com os preços baixos do mercado agrícola.
Um psicólogo ajudava a lidar com os altos e baixos no setor, dando dicas também para resolver crises no casamento e desafios da adolescência. Um jovem ex-jogador de futebol, que sofreu um acidente e ficou paralisado, deu uma palestra sobre superação para quase 1.000 pessoas: — Se eu posso levantar; vocês também podem.
Em meio às palestras de autoajuda, em uma das sessões do evento organizado pela associação dos agricultores do estado (Iowa Farm Bureau), um professor da Universidade do Texas, Joe Outlaw, ensinava a encarar com realismo o período de preços baixos, além de outra lição: como lidar com a competição do Brasil.
— Eles têm o mesmo equipamento, se eles quiserem. Eles têm a mesma tecnologia. Tudo o que eles não têm agora é a infraestrutura, mas estão trabalhando nisso já há algum tempo. Então é duro, é um trabalho duro.
A agricultura brasileira é uma ameaça real para os fazendeiros americanos. Cerca de cem deles ouviram os conselhos do professor Outlaw sobre como lidar com a competição. O Brasil não era o tema da palestra, mas foi citado diversas vezes. Além dele, o único nome de outro país que apareceu durante toda a palestra de cerca de uma hora e meia foi o da China.
Ao final, antes de abrir para perguntas, um dos organizadores do evento, Sam Funk, pegou o microfone para fazer a propaganda de uma grande oportunidade: uma viagem para Mato Grosso, para conhecer a competição.
É comum entre os agricultores o medo da estrada “que levará a produção do Mato Grosso até o mar”, uma possível referência ao Corredor Bioceânico, antigo projeto do Mercosul que ligará o porto de Paranaguá a portos no Chile e que passa pelo estado.
Hubert Hagemann, agricultor aposentado que assistiu a todas as palestras ao lado da mulher, levantou a mão para perguntar o que farão os fazendeiros mais velhos para pagar o aluguel das casas de repouso caso os preços não melhorem.
— Até que haja um problema ao redor do mundo, e espero que seja no Brasil, só estou dizendo, não vejo os preços subindo, respondeu o palestrante, arrancando risos ansiosos da plateia.
Efeito colateral
Brasil e Estados Unidos sempre estiverem entre os principais produtores agrícolas do mundo e são competidores naturais no setor. Porém, desde que Donald Trump deu início à guerra comercial com a China, o produto brasileiro passou a ficar ainda mais atraente para o mercado asiático.
O pesquisador do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) Marcos Jank acredita que os fazendeiros americanos perderão com a imposição de tarifas ao aço brasileiro, porque o aço é usado como insumo nos maquinários.
Ele explica que as exportações de produtos do agronegócio do Brasil para a China e Hong Kong aumentaram de US$ 23 bilhões em 2016, antes de Trump assumir, para US$ 29 bilhões em 2017 e US$ 38 bilhões em 2018, uma diferença de US$ 15 bilhões em dois anos. Já os Estados Unidos viram suas exportações no mesmo período caírem de US$ 30 bilhões para US$ 27 bilhões e, em 2018, US$ 17 bi.
— Houve sim uma substituição dos Estados Unidos pelo Brasil, e isso, qualquer que seja o nome que eles dêem, é um fato. E é um fato que não foi causado pelo Brasil, não tem nada a ver com taxa de câmbio (…) o que realmente mudou estruturalmente é que a guerra comercial diminuiu o espaço dos Estados Unidos na China.
Meio ambiente
Apesar dos prejuízos evidentes com a imposição de tarifas da China em decorrência da guerra comercial, os fazendeiros trazem outros argumentos para justificar por que estão perdendo para o Brasil.
Na segunda-feira, quanto tuitou anunciando que iria restabelecer as tarifas para importação de alumínio e aço brasileiro, o presidente citou uma “desvalorização enorme” do real que não seria boa para os fazendeiros americanos, e sugeriu que o governo estava praticando essa desvalorização propositalmente.
Após o tuíte, questionamentos surgiram sobre as palavras chave: desvalorização, câmbio, aço, tarifas. Mas o próprio presidente deixou clara a razão pela qual estava tomando a atitude: pelos fazendeiros, que não estavam contentes, fazendeiros esses que são uma parte importante do seu público interno, que terá poder para decidir se o presidente continuará ocupando a Casa Branca depois da eleição do ano que vem.
Entre os membros dessa base rural, a questão da desvalorização do real é citada com frequência. Eles acreditam que os Estados Unidos não podem deixar outros países “tirarem vantagem” do dólar forte, mesmo tom do discurso de Trump.
Outra questão citada com frequência é a do meio ambiente. Os agricultores americanos se vêem preocupados com melhores técnicas sustentáveis para cuidar do meio ambiente ao mesmo tempo em que são atacados por não serem sustentáveis. Nos Estados Unidos, os mesmos eleitores que apoiaram Trump em 2016 condenam o Brasil por não cuidar bem das suas florestas.
Tim Bardole diz que “não confia em tudo que ouve na mídia”, mas que já ouviu muita conversa sobre desmatamento na Floresta Amazônica para abrir terras de cultivo. Ele diz que poderá ver pessoalmente se o desmatamento está ocorrendo quando for ao Brasil dentro de poucos meses. E, se os dados estiverem certos, “é exatamente o oposto do que acontece nos Estados Unidos.
— Se o que a mídia está dizendo sobre a destruição da Floresta Amazônica está ocorrendo nesse ritmo, eu acho que isso é perigoso, em longo prazo, para o meio ambiente e o clima.
O agricultor e veterano da Guerra do Vietnã, Ray Meylor acredita que a resposta para vencer as preocupações dos fazendeiros é focar mais na agricultura sustentável em pequenas propriedades e menos em commodities. Ele acredita que os republicanos tendem a apoiar apenas a agricultura para exportação, e por isso deixou de apoiar o partido há mais de 20 anos.
— Ninguém garante meu lucro aqui. Meu plantio é para a mesa. Eu tenho de fazer isso dar certo e fazer com que seja rentável. Se eu não conseguir pagar a água ou não conseguir fertilizante, eu quebro. Mas eles não se importam. Eles vão subsidiar um fazendeiro das commodities para manter seus negócios funcionando todos os anos.
O agricultor de Dunkerton, a 230 quilômetros de Des Moines, Dustin Sage concorda com a tese de que a desvalorização do real contribuiu para diminuir a demanda da soja americana, apesar de não negar que as “tarifas de Trump” também tenham tido um impacto.
– O Brasil sempre foi um grande competidor para nós aqui nos Estados Unidos, mas com a camada adicional da complexidade política, a competição ficou ainda maior.
O Globo