Native quer disseminar sua revolução

 

 

“Deixa eu te dizer como funciona: aqui é a sala da doutrinação”. Leontino Balbo apaga a luz, se acomoda à mesa diante de seu laptop e projeta o primeiro das dezenas de slides que viriam a seguir para recontar 30 anos de história da Native, marca líder de açúcar orgânico no mundo, e que começa agora a olhar para além da cana.

“Aqui já sentaram presidentes de multinacionais, secretários e ministros. Em geral, eles ficam dois dias para entender direito o trabalho que a gente faz”. Ao Valor, ele falou por sete horas e meia, desconsiderando a pausa do almoço.

As longas explanações ancoradas em power-point fazem parte da estratégia que o usineiro brasileiro chama de marketing realista, o antídoto do “greenwashing”.

Crítico contumaz de empresas que pregam a sustentabilidade “da boca para fora”, ele dedica tempo aos porquês que ajudam a explicar como seus canaviais no interior paulista tornaram-se um modelo de produção limpa e levaram a Native à liderança global em produção e exportação de açúcar orgânico.

Estatísticas, inventários, fotos, estudos, gráficos, tudo está nesses slides (já são mais de mil). A Native tem apresentações específicas para cada perfil de seus 64 países compradores. Para os alemães, dados de recuperação de fauna são preciosos. Japoneses, obcecados por assepsia, preferem informações sobre a fabricação e limpeza de produto.

O pano de fundo comum a todas, no entanto, são os resultados operacionais: uma produtividade 25% maior que a média dos canaviais paulistas e seis cortes por ciclo, contra quatro nos plantios convencionais. E sem a necessidade de aplicação de uma molécula química na planta ou no solo.

“Nós estamos quebrando paradigmas”, diz Leontino, frisando o tempo verbal no gerúndio porque, diante da viabilidade da produção sustentável na cana, ele deu início a experimentos em lavouras de soja e milho sem defensivos e adubos químicos, com resultados “que irão incomodar muita gente”.

Em um episódio inédito em 2016/17, a Native semeou 30 hectares de soja e milho. O plano não é diversificar, mas endossar que o manejo correto, com ênfase na autonomia da natureza, pode ser estendido a qualquer cultura.

Segundo Leontino, o rendimento inicial na soja foi de 3.840 kg por hectare (na média nacional, a Companhia Nacional de Abastecimento estima para esta safra 3.156 kg). No milho, 7.200 kg por hectare (contra 5.405 kg na média do país). A colheita foi vendida para a alimentação de aves da Korin e da Fazenda da Toca, de Pedro Paulo Diniz, voltadas ao mercado de ovos sem antibióticos e orgânico.

“Fomos bem-sucedidos, mas há muito o que aprendermos sobre manejo orgânico destas culturas”, afirma Leontino. Ele repete: “Não quero ser produtor de grãos. Quero que os produtores de grãos migrem para uma agricultura sustentável de verdade”, enfatiza.

“Tenho sido procurado por grandes grupos agropecuários do Centro-Oeste que acham que poderão ter problemas no futuro se continuarem produzindo da forma convencional intensificada”. Questionado, não revela nomes.

Leontino é o principal executivo e a alma da Native, do Grupo Balbo, criado em 1956 pela família de imigrantes italianos em Sertãozinho. Com faturamento de R$ 298 milhões em 2017/18 (31% superior ao anterior), a marca já representa um terço da receita total da companhia de açúcar e álcool, graças ao prêmio que praticamente dobra o preço do adoçante orgânico.

Guardada toda a volatilidade deste mercado, o produto orgânico vale atualmente US$ 600,00 a tonelada para exportação. Já bateu nos US$ 800,00, quando a demanda superou a oferta, diz William Hernandes, sócio da consultoria FG/A. À tonelada convencional paga-se US$ 300. No varejo brasileiro, as políticas de margem encarecem ainda mais o orgânico, não raro, três vezes o valor do convencional.

“A Native se consolidou como a maior empresa em produção de açúcar orgânico do Brasil e, portanto, do mundo”, diz o analista.

No ciclo atual, que se encerra em março, a Native produziu 87.000 toneladas de açúcar orgânico. Como no mercado convencional, a maior parte, neste caso, 64.000 toneladas, segue para o exterior. Isso garante à empresa participação de 31% no consumo global de açúcar orgânico, de 280.000 toneladas.

Segundo a FG/A, apenas duas outras usinas entraram e ficaram no segmento de nicho: Jales Machado, com 70.000 toneladas e quase 20% do mercado global, e Goiasa, com 35.000 a 40.000 toneladas e participação estimada de 10%.
Há três anos, a Native iniciou investimentos de R$ 43 milhões para expandir a capacidade de sua usina. A meta é finalizar esse processo em 2019 e atingir uma produção de 140.000 toneladas de açúcar.

“O orgânico representa só 0,16% do mercado mundial de 178 milhões de toneladas de açúcar de cana e beterraba. Nem arranha. É ruim por ser um mercado pequeno, e ótimo por ter tudo isso para substituir”, afirma Leontino, deslizando rapidamente o cursor até chegar à tela do começo da história.

Nascido e criado na Usina São Francisco, onde a produção de açúcar orgânico está concentrada, Leontino alçou a Native à primeira posição com um misto de subversão (palavras suas) e rompimento com o status quo do campo.

“A agricultura hoje não atende a uma agenda social, mas a uma agenda corporativa. É para atender à necessidade de remuneração do capital dos acionistas. As multinacionais sabem que não precisa de 80% (do que elas vendem ou prescrevem para o produtor). Eu entro hoje em qualquer fazenda do Brasil e diminuo em 50%, de cara, o uso de produto químico e elevo a produtividade em 10%. E depois podemos pensar em tirar tudo”.

Curiosamente, não foi o modo de produção orgânico, apesar de certificá-lo como tal, que garantiu viabilidade ao açúcar Native. Desde meados dos anos 80, o usineiro trabalha em uma metodologia científica intitulada “Agricultura Revitalizadora de Ecossistema”.

Mais conhecidoi como ERA, a sigla em inglês para ajudar na doutrinação de clientes estrangeiros, o sistema desenvolvido por Leontino gera, segundo ele, resultados melhores a custos menores. Mais: ele viabiliza a produção sustentável em larga escala, algo ainda difícil para a concorrência orgânica.

“Em pequena e média escala, até 60, 100 hectares, esterco de vaca funciona. Os produtos são saudáveis, a produtividade é ótima, é certificável. Mas passou daí, a produtividade cai e não sustenta mais”.

O ERA parte do pressuposto de que a natureza é autorregulável. Para ele, a discussão vai muito além de usar defensivo. Ao contrário da grande indústria, a Native preza seus micro e macroorganismos. Não existem pragas – mas situações de descontroles de determinada população, derivadas de algum desequilíbrio que precisa ser reencontrado.

Formado em agronomia pela Unesp, Leontino teve a primeira grande reflexão ainda na faculdade. A meia dúzia de filhos de produtores, como ele, já tinha o futuro determinado ao negócio familiar. Os 84 restantes da classe de 90 trabalhariam na indústria química.

“Na faculdade, nós estudamos germinação, fisiologia, reprodução, tudo relacionado à vida. Aí saímos e vamos trabalhar 100% para a morte. Plantas e bichos viram pragas. Isso me chocou. O Estado gasta uma média de R$ 8.000,00 a R$ 9.000,00 por mês para formar um cara que vai sair dali como um vendedor especializado em agrotóxico”.

Como previsto, Leontino começou a trabalhar na usina em 1984. Passou dois anos aperfeiçoando a parte operacional. Ganhou a confiança do pai e dos cinco tios no comando da empresa, até de Alcides, o mais duro de dobrar. Com o moral em alta, virou-se para a família e sugeriu “mexer nas coisas”.

A primeira grande mudança foi o desenvolvimento de máquinas para pôr fim à queima do canavial. Os embates com o Ministério Público já eram frequentes no setor.

Então, Leontino passou a sonhar alto. Não queria fazer produção intensiva e sabia que o orgânico não daria escala à usina. “Entrei no mato para encontrar respostas”. Voltou-se a Goethe, Heigel, à “Evolução Criadora” de Bergson. Com o filósofo alemão Edmundo Husserl aprendeu que a experiência é a fonte do conhecimento e esmerou-se na fenomenologia.

“Eu percebi que todas as iniciativas que eu tinha deflagrado até então eram mera adaptação de tecnologia de cana queimada para a crua”.

Ele discorre sobre a teoria da trofobiose, uma de suas paixões: adubada por meios naturais, a planta tem a sua fisiologia direcionada para a construção de proteínas e moléculas tão complexas que tornam seus tecidos não digeríveis por bactéria, fungo e inseto.

Com a soja foi assim. Leontino diz que apareceram apenas quatro helicoverpas – o maior temor dos sojicultores, na lavoura – mortas. “Coloco a planta num estágio fisiológico tal que a lagarta começa a comer e morre. A própria planta mata a praga. É a natureza que faz isso. Eu só ajudo dando o conforto necessário para as plantas mostrarem o seu potencial”. Ele fala alto, como quem quer ser escutado.

 

Fonte: Valor Econômico

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