Por Roberta Züge
A sociedade, para que funcione com segurança, estabelece requisitos e padrões para diversos segmentos. Estes padrões e os tais requisitos estão baseados em pesquisas que demonstram que são necessários para a execução, a construção, a produção de alimentos, transmissão de energia, telecomunicações, e uma infinidade de outras coisas que, na maioria das vezes, desconhecemos.
Em abril de 2016, um trecho de 20 metros desabou a ciclovia Tim Maia, ocasionando a morte de duas pessoas e ferindo outras três. Esta obra havia sido inaugurada em janeiro do mesmo ano, ou seja, três meses antes do desabamento. Perícias e avalições posteriores identificaram erros em todas as etapas da obra. Iniciando já pela licitação, que estava com o projeto básico incompleto, e as falhas foram se multiplicando também na execução.
Além de questões de projeto, os materiais de construções necessitam de especificações. Desde o tipo de vergalhão utilizado para “bater uma laje”, que deve conter aço com características conforme a norma técnica que a rege, contemplando resistência mecânica, maleabilidade, entre outros itens que devem ser criteriosamente selecionados para que erros não ocorram. Cimento e até areia tem especificações. Exatamente para mitigar problemas como o da ciclovia.
Qualquer fio elétrico, tomada, parafuso, cabo, tantas outras coisas que fazem parte da nossa vida e nem percebemos, possuem especificações. O mesmo ocorre com alimentos.
Fazendo uma analogia simples, quem cozinha também faz e executa um projeto. Elabora a receita, contendo as especificações dos insumos (troca-se a areia da obra pela farinha, por exemplo), como se faz mistura dos ingredientes e identifica o tempo e tipo de cozimento: vai ao forno, fogão, banho-maria, frita, marina-se no limão, etc. Elaborando um bom projeto (a receita), utilizando os insumos certos, conforme as especificações de qualidade e segurança, há mais chances de sucesso.
Assim como as especificações dos materiais de construção são impactantes em uma obra, os alimentos são para qualquer receita. Há ainda outro item além: os alimentos podem veicular doenças. Pasteur em suas pesquisas, em 1864, descobriu que o aquecimento do alimento a uma determinada temperatura, por determinado tempo, e depois resfriado a uma temperatura inferior à de antes, eliminava os microrganismos que causavam enfermidades. Esta descoberta mudou o rumo de algumas doenças, como a tuberculose. Apesar disto, ainda hoje, no Brasil, quase 10% da tuberculose humana ainda é de origem zoonótica, ou seja, transmitida por animais, normalmente, por leite, oriundo de vacas contaminadas, e que não passou por este processo de pasteurização. Percebe-se com isto, que a especificação do insumo da nossa receita precisa conter a sanidade e origem do alimento.
As salmonelas, tipo de bactéria transmitida por alimentos, são, em todo o planeta, consideradas um dos problemas mais alarmantes de saúde pública. Podem causar mortes e, no mínimo, aqueles quadros de cólicas e diarreia que são inesquecíveis. Normalmente, estão associados aos ovos e carnes de frango. Mas, o Brasil já estampou o noticiário norte americano, por exportar mangas contaminadas com salmonela, que ocasionou três mortes nos EUA. As especificações de tratamento das mangas, que exigem um banho, não foram cumpridas. A água estava contaminada com esta bactéria, que contaminou as mangas e desencadeou este cenário indesejado a todos: consumidor e setor produtivo.
De modo geral, as enfermidades causadas por alimentos de origem animal são mais severas. Poderia enumerar diversas delas, desde as causadoras de doenças crônicas a aquelas de quadro agudo, mas, ambas podem causar a morte. Tanto pela ação do microrganismo em si, como de toxinas que podem ser liberadas por eles.
Por isto, há tantos requisitos para produtos de origem animal. Controles já na propriedade. Um leite, mesmo que passe pelo processo de pasteurização, mas que estava com muito estafilococus (bactéria que pode ser encontrada em grande quantidade na glândula mamária de vacas não sadias) pode conter muitas toxinas liberadas pela bactéria, causando vômitos e desidratação. Em pessoas debilitadas e crianças, o quadro pode ser tão severo que pode causar óbitos. A carne, caso não tenha controle de sanidade do rebanho, também pode transmitir doença, como a toxoplasmose, o terror das mulheres grávidas.
Assim, os sistemas de inspeção e fiscalização de produtos de origem animal, contemplam todas as esferas da propriedade, passando pelos procedimentos pré-abate (ou no caso do leite, resfriamento em tanques já na propriedade), pelo processamento, armazenamento, transporte e distribuição.
O Brasil possui sistemas de inspeção que podem ser limitados a regiões. Existem o municipal, estadual e federal. Há mais de uma década, criou-se o Sisbi, um sistema que não é o federal (SIF), mas que contempla requisitos que permitem extrapolar as fronteiras do estado, mas não exportar. E por que tais diferenças? De modo geral, quanto mais distante o ponto de comercialização da produção, mais requisitos e controles são necessários, como por exemplo, a cadeia do frio.
Num país como o nosso, com temperaturas médias bem altas (que a maioria das bactérias também gostam) e com variações no fornecimento de energia, infelizmente, ainda bem significativas, o transporte e armazenamentos ainda são pontos bem críticos, que facilitam a proliferação de microrganismos. Este é um dos fatores que exigem controles de fiscalização diferenciada.
No último final de semana, a cidade brasileira mais conhecida no mundo, principal ponto turístico do Brasil, o Rio de Janeiro, protagonizou outro problema de descumprimento de requisitos técnicos e sanitários. O fato ganhou grande repercussão, com muitos defendendo a ação realizada e a maioria, especialmente os que desconhecem os reais problemas que podem ser ocasionados por alimentos, contrários.
Os empresários do setor de alimentos que foram trabalhar neste evento estavam cientes das especificações necessárias, desde critérios de higiene pessoal, armazenamento e processamento dos insumos, assim como a origem dos produtos. O descumprimento poderia acarretar graves problemas. Além de cumprir sua função de fiscalizar, a vigilância sanitária também impede que sejamos notícia negativa no cenário internacional. Imaginem a repercussão de uma morte, por alimento contaminado, num evento como o Rock in Rio. Ou mesmo, diversas pessoas com quadros de diarreia e vômito durante as apresentações: seria um cenário dantesco.
O Brasil tem figurado como um grande player no canário mundial de alimentos. O setor é um dos poucos que segue produzindo e gerando empregos. Descumprir os requisitos significa também colocar em risco nossa credibilidade, já abalada por episódios onde os que deveriam fiscalizar e autuar não o fizeram. Condenar, os que estavam realizando seu trabalho corretamente, é carta branca aos que pretende burlar.
Mudanças em requisitos podem existir. Normas são revisadas, mas sempre embasadas em pesquisas e comprovações. Enquanto isto, as especificações devem ser cumpridas, seja na “construção” do sanduíche, seja na de uma ciclovia.
Roberta Züge é membro do Conselho Científico Agro Sustentável (CCAS); vice-presidente do Sindicato dos Médicos Veterinários do Paraná (SINDIVET); médica veterinária doutora pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ/USP); sócia da Ceres Qualidade.
Fonte: CCAS