Por Sergio Leo*
Em meio a esforços de reaproximação com os Estados Unidos e de negociação de um acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia, o Brasil poderá ser levado a disputas comerciais com americanos e europeus já no próximo ano. A nova Política Agrícola Comum na Europa e a Lei Agrícola dos EUA começam em breve a ser monitoradas pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e pela consultoria Agroícone, a mais qualificada do setor, com base em estudos que indicam risco de forte crescimento dos subsídios aos produtores rurais nesses dois mercados.
É certo que o Brasil não poderá usar a autorização já concedida pela Organização Mundial do Comércio (OMC) para punir mercadorias importadas dos Estados Unidos em retaliação aos subsídios concedidos irregularmente pelos americanos aos produtores locais de algodão. Com a nova lei agrícola, os pagamentos diretos aos agricultores, condenados pelas regras da OMC, foram substituídos por um complexo sistema de seguro-agrícola que, teoricamente respeitaria as normas internacionais. O que o Brasil tenta, hoje, na OMC, é quase um novo processo contra os EUA, para provar que a nova lei agrícola também tem o poder de distorcer preços no mercado internacional de algodão.
O ativismo passado do Brasil contra subsídios ilegais não foi em vão. Provocou mudanças sensíveis no apoio dos EUA e dos europeus aos produtores agrícolas, reduzindo e até eliminando em alguns casos os estímulos ao aumento de produção capazes de deprimir artificialmente os preços mundiais, em benefício dos agricultores favorecidos por essas políticas. O que a Lei Agrícola (a antiga Farm Bill) americana e a Política Agrícola Comum europeia mostram é que o comércio agrícola internacional entrou em uma nova fase, com mecanismos de apoio mais sofisticados mas, nem por isso, inofensivos.
Há riscos de ampliação do apoio desleal à competição
Esse cenário ficou evidente em seminário fechado realizado há alguns dias pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e o Ipea, sobre cooperação comercial e o futuro da OMC. Especialistas detalharam os riscos de volta e ampliação do apoio desleal à competição agrícola estrangeira, que a presidente da CNA, Katia Abreu, já havia mencionado no início do ano. André Nassar, um dos principais cérebros por trás da qualificada intervenção brasileira nas discussões agrícolas na OMC, levantou, especialmente, o novo papel do seguro agrícola no arsenal dos EUA para a disputa no comércio de produtos rurais.
O levantamento dos mecanismos de apoio rural, aplicado às previsões de preços no mercado internacional, mostra que os europeus dão muito mais apoio oficial que os americanos aos seus produtores rurais, por hectare plantado. Mas a maneira como se dão os subsídios europeus é menos atrelada ao volume de produção, o que faz com que sejam menos capazes de aumentar indevidamente a oferta e reduzir preços internacionais. Gastam-se, em dinheiro público, pelo menos 280 euros por hectare, em média, na União Europeia, enquanto, nos EUA, a nova lei agrícola permitirá pagamentos, principalmente para subsidiar a contratação de seguro agrícola, estimados em torno de US$ 275 por hectare, no caso dos produtores de milho; US$ 140 para a soja e US$ 290 para o algodão.
Os valores são aproximados, apenas como referência, porque o estudo apresentado por Nassar no seminário da FGV/Ipea (em cooperação com o instituto de pesquisa sul-africano SAIIA) usou projeções de preços agrícolas feitas pelo departamento de Agricultura americano em março deste ano, que previam preços em queda, o que ainda não se verificou. Os contratos que vêm sendo firmados para a próxima safra e as previsões de alta na produção para 2014/2015, porém, indicam redução de preços e, portanto, aumento da ajuda oficial.
As primeiras estimativas de impacto negativo da lei agrícola americana apontavam a possibilidade de redução, nos preços do milho, de pelo menos 3%; na soja, no mínimo 2%; e, no algodão, em torno de 4%, no período entre 2014 e 2018. Esse estudo está sendo reestimado, com base nas novas projeções de preços. Mas os especialistas brasileiros acompanham apreensivos a expansão do sistema de seguro agrícola nos EUA, que, no caso do algodão, pode cobrir até 90% da renda esperada pelo produtor e garante subsídio – pagamento, pelo governo – de até 80% do prêmio devido pelos ruralistas.
O modelo adotado pode turbinar com verba oficial o aumento da produção nos EUA, protegendo os agricultores locais das perdas com a queda de preços e dando a eles vantagem indevida na disputa pelos mercados internacionais.
Sem avanços nas negociações multilaterais de comércio na OMC, o instrumento que os agricultores brasileiros terão, para evitar concorrência desleal e redução artificial nos preços internacionais, serão as disputas na OMC, para exigir mudanças no apoio interno aos produtores ou autorizar o Brasil a adotar medidas de retaliação contra exportações europeias ou americanas – alternativa mais provável, já que eliminar completamente as regras legais que distorcem o comércio é mais difícil, como mostrou a briga Brasil-EUA em torno do algodão. É uma agenda que o próximo presidente, qualquer que seja, terá de enfrentar.
*Sergio Leo é jornalista e especialista em relações internacionais pela UnB. É autor do livro “Ascensão e Queda do Império X”, lançado em 2014. Escreve às segundas-feiras.
Fonte: Valor Econômico