O atual embate sobre o prazo de aprovação de um novo agroquímico no Brasil e por quem esses produtos devem ser avaliados, que norteia as polêmicas em torno do projeto de lei 6.299/2002, o “PL dos Agrotóxicos”, desvia o olhar de algo mais importante em curso nos Estados Unidos e em países da Europa: a discussão sobre o real impacto à saúde e ao ambiente de produtos há décadas usados nas lavouras e que passaram a ser questionados com mais veemência por parte da sociedade civil. A opinião é de José Eli da Veiga, professor-sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, para quem o enfoque estreito do Congresso mostra que “estamos olhando para o umbigo, em vez de olhar o mundo”.
A atual cruzada das indústrias químicas e dos deputados ruralistas contra a lei dos agrotóxicos afirma que o Brasil deve se alinhar ao que é feito nos países mais avançados do mundo. Mas nós estamos querendo nos aliar exatamente a quem? À Suíça, que pretende fazer um plebiscito para banir todos os pesticidas sintéticos? À França e aos [Estados] americanos que estão em processo de julgar ações contra o glifosato? Nós vamos imitar qual país desenvolvido, questiona Veiga, que é colunista do Valor.
Apresentado pelo atual ministro Blairo Maggi e adaptado pelo relator Luiz Nishimori (PR-PR), o PL dos Agrotóxicos foi aprovado no mês passado pela Comissão Especial da Câmara. Agora deverá seguir para votação no plenário da Casa e, na sequência, no Senado.
Agrônomo e economista, com 27 livros publicados, Veiga se diz preocupado com o fato de os questionamentos em economias mais maduras estarem à margem das discussões brasileiras. E cita dois exemplos: os milhares de casos de câncer e má-formação sob a investigação nos EUA por suposta relação com a aplicação do defensivo Roundup, da Monsanto, a empresa refuta todas as acusações, e do clordecona, um inseticida ainda utilizado na fruticultura e associado à ultra contaminação de 90% da população da Martinica e do Guadalupe, onde era pulverizado nos plantios de bananas. “Embora proibido nos EUA desde 1975, o produto continuou a ser autorizado em outros países sob pretextos idênticos aos que têm sido alegados pelos ruralistas brasileiros”, disse Veiga.
Segundo Veiga, os agrotóxicos são apenas o “pico do iceberg” formado pelos chamados perturbadores endócrinos, que reúnem um amplo leque de substâncias químicas que interferem no conjunto de glândulas do corpo e estão presentes em alimentos processados e colchões, entre muitos outros produtos. “Nem começamos a discutir tudo isso porque nem as agências reguladoras estão colocando o assunto na pauta”.
Suas preocupações mostram o quanto o PL dos agrotóxicos extrapolou a esfera política e científica e passou a envolver a sociedade brasileira mais até que os transgênicos.
Em relatório intitulado “Você não quer mais respirar veneno”, a organização Humans Watch Brasil alertou na sexta-feira para intoxicações agudas causadas por produtos químicos em sete localidades em zonas rurais. “Há um regulamento nacional que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos a 500 metros de povoações, cidades, vilas, bairros e mananciais de água. Mas essa regulamentação não é observada de forma consistente”. De acordo com a ONG, agrotóxicos aplicados no Brasil em 2016 como acefato, atrazina e paraquat não são mais usados na Europa, “o que evidencia o quão perigosos eles são para alguns padrões”.
Para Mário von Zuben, diretor-executivo da Andef, associação que reúne as empresas de defensivos no Brasil, há uma confusão de terminologia. “Muitas vezes produtos deixam de ser registrados em outros países porque não fazem mais sentido – e não necessariamente são banidos”, diz. “Há diferença entre não ter registro e ser banido. Há um jogo de palavras para induzir a opinião pública”. Ainda assim, se houvesse necessidade de reavaliar algum produto por questionamentos de sua segurança à saúde, como pedem algumas ações nos EUA, Zuben disse que isso não seria um problema.
“Diferentemente de outros países, que determinam um prazo para a renovação comercial de agroquímicos, nossa lei tem um mecanismo de reavaliação de produtos que permite que a qualquer momento ele possa ser vetado”. Segundo ele, já houve ajustes assim no passado envolvendo produtos clorados e organofosforados.
O executivo não crê que o Brasil esteja alheio às tendências no resto do mundo. Ele cita estudos que mostram os ganhos ambientais das novas tecnologias químicas para o campo e lembra que enquanto o Brasil leva, em média, oito anos para aprovar um novo produto, os maiores competidores agrícolas do país (EUA e Argentina) o fazem em dois anos e meio. Por causa disso, há uma fila de 3.000 processos aguardando aprovação. “E quanto mais nova a tecnologia, mais segura ela é”.
Para Veiga, se trata de uma guerra de estatísticas e cientistas. “Estamos vivendo uma coisa muito parecida com o que a indústria do tabaco viveu décadas atrás. E a indústria química se defende da mesma forma”.
Valor