Especialistas debatem lei que regulamenta aquisição de imóvel rural por estrangeiros

Propriedade rural

Propriedade rural: aquisição de imóvel por estrangeiros gera discussões. 

Com a entrada em vigor da Lei do Agro (nº 13.986/2020), as limitações previstas na norma que regulamenta a aquisição de imóvel rural por estrangeiro no Brasil (Lei nº 5.709/71) deixaram de ser consideradas. Neste caso, o estrangeiro não mais se sujeita a qualquer restrição em termos de área de imóvel rural a ser adquirido no País.

Desde então, essa mudança tem provocado uma série de debates no meio jurídico. Especialistas questionam desde a a garantia de efetividade jurídica da matéria a uma possível inconstitucionalidade no artigo 51 da Lei do Agro, passando por aspectos relacionados à área de fronteira.

“No passado e no presente a aquisição de imóvel rural por estrangeiro, pessoa física e jurídica, suscitou controvérsias acerca da sua constitucionalidade e legalidade. O ponto de partida para a exata percepção destas controvérsias exige a correta compreensão do contexto histórico-econômico-social das restrições ao exercício da liberdade e da propriedade impostas pelo legislador constituinte e ordinário”, salientou o diretor jurídico da Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), Frederico Price Grechi.

“A partir de agora, observada a nova disciplina, está permitida à empresa nacional com capital majoritariamente estrangeiro, ou mesmo a empresa estrangeira autorizada a funcionar no Brasil, a aquisição de imóvel rural no País sem submeter-se a qualquer restrição de área ou coisa parecida. No entanto, é preciso que o procedimento aquisitivo observe a condição necessária para sua efetividade juridicamente perfeita”, destacou em artigo o advogado especialista em agronegócio, Lutero de Paiva Pereira.

Causa primária

Segundo ele, ” deve haver, necessariamente, uma causa primária negocial que leve à ulterior aquisição do bem, exigindo, assim, um negócio precedente que justifique a formalização aquisitiva do ato subsequente (…) Portanto, caso a empresa estrangeira, ou mesmo a empresa nacional com capital majoritariamente estrangeiro, queira adquirir imóvel rural no País sem enfrentar as restrições legais, é preciso que esta, antes de mais nada, realize as transações precedentes ou preparatórias nos moldes preconizados pela vigente disposição legal”.

Caso contrário, enfatizou Pereira, “o negócio poderá eivar-se de vício insanável, a saber, o vício da nulidade que ainda está previsto na Lei n. 5.709/71 . Como a aquisição de imóvel é um ato de relativa complexidade, ainda mais quando uma das partes se sujeita a legislação especial, tal qual o caso do estrangeiro, até mesmo os atos mais remotos precisam ser realizados sob olhar jurídico criterioso e atento”.

Alteração

O advogado e professor Albenir Querubini lembrou que a Lei do Agro alterou o artigo 1º  da Lei nº 5.709/1971, excluindo das restrições à aquisição de terras brasileiras por estrangeiros (pessoas físicas ou jurídicas) os casos de sucessão legítima, com a ressalva às áreas consideradas indispensáveis à segurança nacional, bem como às hipóteses de constituição de garantia real (incluindo a propriedade fiduciária) e aos casos de recebimento de imóvel em liquidação de transação com pessoa jurídica por meio de realização de garantia real, de dação em pagamento ou de qualquer outra forma.

Concorrência

“A circunstância soa maravilhosa, sob o enfoque econômico. Contudo, vaticina-se que grandes transnacionais ocupariam vastas terras e concorreriam, aqui dentro, com os produtores nacionais já instalados”, avaliou o advogado Rogério Devisate, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários das União Brasileira dos Agraristas Universitários (UBAU).  “É o que se quer?”, indagou o jurista.

“Além disso, a história registra que os mexicanos perderam 55% do seu território com o processo de venda de lotes a estrangeiros, tendo passado aos EUA o petróleo texano, etc. Imaginemos estrangeiros adquirindo milhares de hectares na Amazônia legal e no Cerrado. Jamais os retiraríamos de lá. É o que se deseja, do ponto de vista da Nação, da economia, da geopolítica e da Soberania Nacional? Estes aspectos devem ser considerados.”

Áreas de fronteira

Já o advogado agrarista e ambiental Alexandre Valente Selistre observa que a rejeição de fazendeiros e juristas à venda ilimitada de propriedades a estrangeiros, segundo as leis 5.709/71, 6.634/79 e do artigo 190 da Constituição Federal, no âmbito da soberania nacional, pode ser explicada pelas necessidades de produção de alimento acessível para consumo interno, de acesso à terra e de manutenção da extensão territorial.

“Há uma gama de outras oportunidades para aproveitamento do capital estrangeiro, que é muito bem-vindo, contudo, sem envolver aquisição imobiliária, principalmente nas zonas de fronteira. Simples assim”, disse Selistre.

Nesse contexto, Querubini ressaltou que a  a Lei do Agro, ao acrescentar o artigo 4º ao artigo 2º da Lei nº 6.634/1979, sobre imóveis localizados em faixa de fronteira, flexibilizou a necessidade de autorização prévia do Conselho de Segurança Nacional as hipóteses de constituição de garantia real, incluindo-se a transmissão por alienação fiduciária a estrangeiros.

“A lógica da Lei do Agro foi facilitar o financiamento de produtores rurais brasileiros pelo capital estrangeiro. Na prática, é inegável que a referida flexibilização pode ser um caminho para facilitar a aquisição de terras por estrangeiros”, disse Querubini.

“Cabe observar que, até o momento, não houve regulamentação dos novos dispositivos, os quais não estão abrangidos pelos Decretos nº 74.965/1974 e nº 85.064/1980, que regulamenta a Lei de Aquisição de Terras por Estrangeiros e a Lei da Faixa de Fronteira, respectivamente”.

Parâmetros constitucionais

Por sua vez, Pereira questiona se a Lei do Agro obedeceu a parâmetros constitucionais quando retirou as limitações da Lei nº 5.709/71 para o estrangeiro adquirir imóvel rural no País. “Salvo melhor juízo, é possível sustentar a inconstitucionalidade do art. 51 da Lei nº 13.986/2020, em face do contido no art. 190 da Constituição Federal. Com efeito, dispõe a Carta Magna no dispositivo citado que a “lei regulamentará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira”.

“A Lei, portanto, para estar de acordo com a Constituição. deve não só regulamentar, como também limitar o direito do estrangeiro no tocante à aquisição e ao arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira”, afirmou Pereira.

“Quando, portanto, a Lei do Agro retirou as limitações pré-estabelecidas pela Lei nº 5.709/71, dando ao estrangeiro direito ilimitado de adquirir propriedade rural no País, é claro que sua disciplina se revestiu de incontrariável inconstitucionalidade, já que não poderia alterar uma Lei que estava conforme a Constituição, ou seja, limitando o direito do estrangeiro, para deixá-la em desconformidade à Constituição, ou seja, sem limitar o direito do estrangeiro”.

Contraponto

Ainda no contexto da lei, o jurista Francisco Torma entende que a alteração da norma não afronta a Constituição Federal no sentido de que as limitações à aquisição dos imóveis rurais continuam em vigor. “Tecnicamente, o que a Lei do Agro criou foi uma exceção às regras gerais das leis 5.709/1971 e 6.634/1979 ao possibilitar que o estrangeiro possa receber esse imóvel enquanto garantidor de contrato ou operação financeira”.

Para Torma, seria relevante que a legislação previsse, nestes casos, um tempo para que o estrangeiro, quando não cumprir com os requisitos normais de aquisição de propriedade, se desfizesse do bem, aos moldes da consolidação da alienação fiduciária.

“Se o imóvel for obtido mediante alienação fiduciária, a empresa, estrangeira ou não, tem um tempo para leiloar o bem, e essa regra poderia ser ampliada para os outros casos em que o estrangeiro venha a receber esse imóvel em execução de garantia ou pagamento, mas não cumpre com os demais requisitos legais de aquisição de imóvel no Brasil”, concluiu.

Equipe SNA
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