José Graziano admitiu ter inventado números sobre agricultura familiar
No apagar das luzes de 2024, um episódio de suma relevância para o agronegócio em geral recebeu pouca atenção da mídia, mesmo em veículos voltados para o setor. O constrangimento da notícia talvez justifique a baixa repercussão, mas não diminui o seu impacto. José Graziano da Silva, ex-ministro do combate à fome no primeiro governo Lula, admitiu ter ajudado a inventar que 70% dos alimentos produzidos no país são advindos da agricultura familiar.
Foi durante participação, no início de dezembro, em debate sobre a pobreza no semiárido rural nordestino. O jornal paranaense Gazeta do Povo foi o primeiro verificar o teor da fala, que pode ser acessada neste link:
Superação da pobreza rural no semiárido brasileiro: A trajetória do Projeto Dom Hélder Câmara , a partir da primeira hora e meia de evento. O pronunciamento de Graziano, no acontencimento que ele sabia ser filmado e transmitido em tempo real, não deixa dúvidas sobre a clareza de sua manifestação:
“Não acho que nós comemos as coisas que são produzidas pelos agricultores familiares. É um erro nós continuarmos pensando assim, faz parte da herança agrária e agronômica que nos atrapalha tanto. Hoje não são mais os agricultores familiares que alimentam a cidade. Pior que um erro, é um terraplanismo, é ignorar os números.”
Graziano é considerado o pai do programa Fome Zero. Sua admissão é chocante por diversas razões, pois escancara uma falácia que governos petistas sustentaram por décadas: a de que os pequenos agricultores colocam alimentos nas mesas dos brasileiros, enquanto a produção de grande porte busca exportar, sem preocupação com a segurança alimentar do país. O ex-ministro, que é agrônomo de formação e afirmou ter familiares na mesma profissão, tentou justificar a mentira com a defasagem dos dados censitários da época:
“É vergonhoso ver hoje meus colegas do PT insistindo nos números que nós produzimos nos anos 70. Eu ajudei a calcular esses números. No começo dos anos 2.000 nós acordamos: vamos começar a falar em 70% para não dar briga? Inventamos esse número de 70%. Esse número não tem em lugar nenhum. O último censo que tínhamos era de 1970, então tivemos que inventar esse número. Então, por favor, vamos virar o disco.”
A tranquilidade das falas de Graziano, que também ocupou o cargo de diretor-geral da FAO/ONU, contrasta com os efeitos práticos nocivos que essa tese gerou. A falsa rivalidade entre agricultura familiar e produção empresarial fomentou políticas públicas equivocadas, além de incutir mais ideologia num setor já fustigado pelas inclinações partidárias. No Brasil, a própria definição de propriedade rural familiar, com frequência, é mal conhecida: enquadra-se no conceito o conjunto de terras equivalente a, no máximo, quatro módulos fiscais (segundo o INCRA), independentemente de sua gestão reunir membros de um mesmo clã.
Um mito que já vinha sendo contestado
Há anos, vários estudiosos do setor já questionavam o percentual de 70%, sobretudo após o Censo Agropecuário de 2017. O levantamento demonstrou que a agricultura familiar corresponde, na verdade, a 23% da produção nacional. Não se trata de diminuir a importância desse segmento, mas de debater com base em informações corretas, que ainda encontram resistência em autoridades, documentos oficiais e discursos. O uso de números equivocados para fins políticos prejudica inclusive a própria agricultura familiar, que pode sofrer com acesso limitado a crédito e alternativas de mercado.
Primo do ex-ministro, Xico Graziano não foi pego de surpresa pelas declarações. Em texto recente que pode ser lido na íntegra, no Poder360 (Xico Graziano | Alimentos básicos: a mentira dos 70%), ele aborda o episódio, relembra como sempre contestou as estatísticas oficiais e classifica a atitude de José Graziano como sendo “de uma honestidade intelectual raríssima nos políticos-intelectuais de esquerda”.
José Graziano também surpreendeu ao dizer que a soja, segmento historicamente estigmatizada pelos críticos da produção agrícola em larga escala, alavancou o setor e possibilitou avanços em outros cultivos:
“Eu como muita soja, meus netos comem muita soja. E comem muita coisa que a soja permite comprar. O trigo, por exemplo. Se não tivesse exportação de soja nós não compraríamos o trigo nesse país com os dólares das exportações.”
O mito resistiu ao tempo porque muitos movimentos sociais e agitadores agrários em geral gostavam de associar a produção de assentamentos como volumosa e sustentável, em antagonismo à suposta velha prática dos grandes latifúndios, que viviam sob ameaça de invasões e falsas acusações de improdutividade. Por outro lado, há desconhecimento sobre a revolução tecnológica e logística que, nos últimos cinquenta anos, aperfeiçoou as cadeias produtivas no sentido de abastecer a crescente população das metrópoles, que aumentava justamente com a chegada de antigos trabalhadores rurais buscando melhores condições de vida.
Pego de surpresa, o Instituto Fome Zero divulgou nota minimizando as falas de José Graziano e alegando que foram tiradas de contexto. Como se vê, ainda existe quem aposte numa rivalidade entre agricultura empresarial e familiar, quando na verdade são segmentos complementares de um universo pujante. A vigilância deve recair sobre aqueles que desejam fazer uso político dessa falsa dicotomia.
Por Marcelo Sá – jornalista/editor e produtor literário (MTb 13.9290) marcelosa@sna.agr.br
Fontes consultadas para essa reportagem: Gazeta do Povo, INCRA, IBGE, Embrapa, ESALQ – USP.