O Brasil tem muitos experts em mercado de carbono. Eu não sou um deles. Mas o assunto é importante demais para ser abordado apenas por eles, até porque a criação do mercado regulado de carbono passa por aprovação de legislação no Congresso Nacional e, pelo que acompanhei dos debates sobre o PL 412/2022, aprovado no Senado, o Congresso ainda não tem maturidade suficiente para liderar o processo. Ou seja, se algum PL for aprovado
nas duas casas, o será, principalmente, por força do Executivo Federal, esse sim com muita gente que entende do assunto.
A estratégia do Executivo, na minha visão, foi enviar um PL com diretrizes gerais para facilitar o debate e minimizar a oposição ao mercado regulado de carbono no Congresso Nacional, deixando os dispositivos operacionais para o nível infra legal, ou seja, de domínio total do Executivo. A estratégia do Executivo parece ter dado certo, tanto é que o
PL foi aprovado com rapidez no Senado Federal. Nada que entra no Congresso sai do mesmo jeito, tendo sido a exclusão da etapa de produção agropecuária do mercado regulado a principal modificação promovida pelo Senado.
No lugar de aumentar o teto das emissões até um certo nível que excluísse todos os agricultores das obrigações de reportar e, assim, reduzir a resistência do setor, o Senado optou por excluí-lo. Não tenho nenhuma crítica à decisão do Senado, entendo a decisão como a mais coerente possível dado o PL enviado.
O processo de exclusão do setor agropecuário revelou algumas das intenções do proponente do PL. Por tratar-se de um PL com normas gerais – é a segunda vez que menciono isso – as interpretações feitas por pessoas de fora do governo, mas defensoras da criação de um mercado regulado de carbono no Brasil, foi que o projeto, até que se prove o contrário, era inofensivo para qualquer setor. Mas não é bem assim.
A exclusão do setor agropecuário foi seguida de manifestações contrárias à decisão do Senado, argumentando que a maior fonte de emissões de gases de efeito estufa tinha sido excluída do mercado regulado, ou seja, o desmatamento (mudança de uso da terra). Juntando 50% das emissões por mudança de uso da terra com 25% de emissões no ciclo
produtivo da agropecuária, 75% das emissões teriam sido excluídas do mercado regulado, tornando-o muito restrito.
É nesse ponto que, mesmo não sendo um expert, quero deixar minha opinião. Mudança de uso da terra e produção agropecuária são atividades diferentes. Recentemente o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG) publicou um estudo afirmando que a produção agropecuária – o SEEG fala em produção de alimentos, mas vou ser mais preciso tecnicamente e falar em produção agropecuária – é responsável por 75% das emissões brasileiras de GEE.
O raciocínio feito pelo SEEG foi adotar uma metodologia de alocação. Um aparte aqui: as metodologias de alocação têm sido a grande pedra no sapato de quem discute emissões de ciclo de vida de produtos agropecuários. Comumente, e digo isso com base na minha experiência nesse assunto, as metodologias de alocação levam a uma atribuição exagerada da responsabilidade das commodities agropecuárias pelo desmatamento e conversão de
vegetação nativa (mudança de uso da terra) e, assim, superestimam emissões de uso da terra. A visão aqui é a seguinte: vamos atribuir aos usos agropecuários que sucedem a conversão de vegetação nativa a responsabilidade pela mudança e, assim, contabilizar as emissões de mudança de uso da terra ao uso agropecuário.
O SEEG constrói seu racional com base nas matrizes de transição do MapBiomas. O MapBiomas observa a terra e identifica o uso econômico implantado na área que foi objeto de conversão de vegetação nativa. O MapBiomas mostra que predomina a implantação de atividades agropecuárias na área recém convertida. Assim, o SEEG decidiu alocar as emissões por mudança de uso da terra no setor agropecuário. E daí para frente, dizer que a conta das emissões por desmatamento e conversão deve ser atribuída ao setor agropecuário. Ou seja, ao ter tirada a produção agropecuária do PL do mercado regulado de carbono, tirou-se a conversão de vegetação nativa por consequência.
Meu questionamento: por que fazer essa interpretação? Será que os experts no assunto – e conforme disse, tem vários no Brasil – não conseguem pensar diferentemente? O sistema de alocação utilizado pelo SEEG, para mim, é altamente questionável. Primeiro, o SEEG tentou criar uma análise de ciclo de vida global e ampla, rompendo a fronteira do inventário de emissões, que é o que o SEEG faz: traz uma alternativa de inventário àquele feito pelo governo federal. Segundo, a conversão de vegetação nativa ocorre numa área delimitada não sendo atribuível por alocação a um setor inteiro. A emissão de supressão de vegetação nativa pertence ao agente que a executou, ou seja, se ocorreu numa propriedade rural que decidiu cultivar algo, a conta é apenas daquela propriedade rural e não de todos que cultivam. Vai ficar claro abaixo que no lugar de ajudar, o SEEG atrapalhou.
Agora vamos pensar em propostas. O setor agropecuário quer ter suas remoções reconhecidas, por conta de práticas regenerativas de produção, manejo de solo e sistemas integrados que capturam carbono via vegetação ou via matéria orgânica no solo. É um pleito justíssimo e que, se os incentivos corretos existirem via mercado regulado de
carbono, a adoção de tais práticas e sistemas vai responder crescendo. Mas no mercado regulado não tem como se aproveitar do crédito sem participar do débito. Ao tirar o setor agropecuário da obrigação de reportar e reduzir, tirou dele a chance de valorizar suas remoções. Mas não precisava ser assim.
A proposta é: o setor agropecuário fica fora da obrigação de reduzir, mas dentro da possibilidade de oferecer seu balanço positivo para aqueles setores que precisam compensar. Se uma propriedade agropecuária tem balanço positivo, ou seja, remove mais do que emite, esse saldo deveria ser elegível para o mercado regulado. Com isso, o
mercado regulado passa a ser indutor das boas práticas e dos sistemas de integração que produzem propriedades superavitárias em carbono. Se as emissões do ciclo produtivo ficassem dentro do mercado regulado, a intenção seria uma só: punir. Mas dando ao produtor rural a chance de ele fazer o balanço da sua propriedade e, sendo ele positivo,
disponibilizar no mercado de carbono, a intenção passa a ser outra: induzir.
E a conversão de vegetação nativa? Nenhuma propriedade rural que converte vegetação nativa vai conseguir num futuro próximo ser superavitária. Assim, na contabilidade da propriedade rural, aquelas que convertem vegetação nativa estão automaticamente excluídas do mercado de crédito. No entanto, mesmo que as emissões do ciclo produtivo dela estejam excluídas do mercado de carbono, as emissões por conversão de vegetação
nativa deveriam estar dentro do mercado regulado, afinal são emissões de natureza diferentes, embora ocorrendo no mesmo estabelecimento produtivo. Por isso afirmei que atribuir as emissões por conversão de vegetação nativa à atividade agropecuária foi uma escolha errada. Ter reconhecido as duas como atividades diferentes teria dado chance de deixar as emissões do ciclo produtivo fora do mercado regulado, mas as por conversão de vegetação nativa dentro.
Como o governo optou por enviar um PL com normas gerais – terceira vez que falo isso – para minimizar a resistência no Congresso Nacional, ele perdeu a chance de colocar uma proposta de mercado regulado com o grau de sofisticação que o Brasil merece. O Brasil poderá ter seu mercado regulado de carbono em breve, mas muitos anos depois de outras regiões do globo. Nosso mercado de carbono nasce diferente por conta do perfil das emissões e por conta do nosso setor agropecuário, que tem um potencial muito maior de remover carbono do que agropecuárias de outros países. Já estamos entrando atrasados no mercado regulado. Que mal faria o governo federal ter enviado um PL mais alinhado com o setor agropecuário para ter ele do seu lado na defesa do mercado regulado? Nenhum.
Agora, me parece que é água debaixo da ponte.
Por André Nassar é presidente executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos
Vegetais (Abiove), ex-secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura e ex-presidente do Conselho de Administração da Embrapa