Antes do ovo, vem a galinha

O passado bate à porta das granjas de produção de ovos. Dos Estados Unidos à Ásia, um novo clamor do mercado pede aos avicultores que voltem aos tempos dos nossos avós, quando as galinhas eram criadas como galinhas e não como robôs que só comem e chocam. Desde a automação das propriedades, nos anos 1980, as aves passaram a ser engaioladas num sistema de produção em massa que viabilizou o consumo mundial e transformou o ovo na principal proteína animal em vários países, principalmente nos menos desenvolvidos, mas que chegou a tal ponto que provocou uma inevitável reação.

Grandes indústrias consumidores de ovos, matéria-prima para massas, biscoitos, bolos, maioneses e substratos para atletas, e cadeias globais de restaurantes, como o Mc Donald’s, anunciaram ao longo dos últimos meses políticas comerciais de aquisição restritas a ovos que tenham sido gerados por galinhas livres dessas gaiolas. E não só isso: as galinhas devem reconquistar o direito perdido de ter ninhos, se movimentar, ciscar, arriscar voos rasteiros e subir em poleiros, como manda sua natureza.

No centro dessa nova orientação (ou velha prática) estão grupos da sociedade civil preocupados com o bem-estar animal. Eles acusam as granjas modernas de produzirem ovos à custa da crueldade com as galinhas, o que inclui o mutilamento do bico para evitar o canibalismo resultante do estresse.

Como resposta às críticas, 229 empresas americanas fizeram comprometimentos públicos pelo fim das gaiolas, um movimento que tem puxado subsidiárias e empresas nacionais em outros países a fazer o mesmo. No Brasil, país de 39 bilhões de ovos produzidos em 2016, foram 43 empresas até agora, além de restaurantes e cadeias hoteleiras. Em todos os casos, o prazo final para transição dado pela indústria é 2025 – só oito anos.

“Não sei como vai ser isso, mas estamos fazendo”, afirma Leandro Pinto, dono do grupo brasileiro Mantiqueira, a maior granja de galinhas poedeiras da América do Sul e 12ª no ranking mundial.

Em Paraíba do Sul, na divisa do Rio de Janeiro com Minas Gerais, o empresário iniciou um projeto-piloto que, ele acredita, vai transformar novamente a avicultura nacional – ou parte dela. Desde julho, a Mantiqueira passou a produzir diariamente na unidade 154 mil ovos “cage-free”, expressão em inglês para designar a produção sem gaiola. Primeiro a trazer a mecanização às granjas do país, Pinto quer se tornar agora protagonista também na nova modalidade.

As quase 600 mil galinhas dessa granja são a parte ínfima do plantel de 11 milhões de poedeiras da Mantiqueira (7.5 milhões já produzindo), distribuídas em outras três unidades em Minas Gerais e Mato Grosso e que garantem ao grupo o faturamento anual com ovos da ordem de R$ 500 milhões.

À medida em que ele anda por entre as aves soltas no galpão, algumas se afastam, levantando uma poeira de serragem do chão, outras chegam curiosas para bicar suas botas, sem incomodá-lo, o avicultor admite que as cartas estão jogadas mas que é difícil saber o resultado final. “Estamos aprendendo a voltar ao passado sem qualquer indicador de que é viável”, disse ele. Há ainda muitas dúvidas, de custos à regulamentação.

Na semana passada, Pinto recebeu o Valor depois de retornar de um encontro mundial de avicultores na Bélgica para discutir os próximos dez anos do setor, com bem-estar e gaiolas na pauta. “Todo mundo se perguntava como transformar a avicultura de hoje no que as empresas estão pedindo”. Sobre a mesa, conta, estava um jogo de pôquer com um sinal de interrogação. “Como quem diz: os que forem  (para o sistema cage-free) correm o risco de ganhar muito ou perder muito”.

Para se lançar no segmento antes da concorrência, a Mantiqueira arrendou por dois anos a granja em Paraíso do Sul após o pedido de recuperação judicial da Globoaves e amarrou um acordo comercial de venda exclusiva de ovos “cage-free” da marca própria do grupo Pão de Açúcar. Em três meses, a empresa adaptou as instalações da propriedade e lançou a nova linha de ovos, com investimento total estimado de quase R$ 7 milhões.

Os ovos já chegaram aos supermercados Pão de Açúcar e Extra de São Paulo e outros seis estados do Sudeste e do Centro-Oeste do país. Segundo o gerente-geral comercial da rede varejista, Luiz Cláudio Haas, o volume de vendas surpreendeu. “Nossa expectativa era vender 1% (do volume de ovos comercializados pelo grupo), mas chegamos em setembro a 3%”. Até dezembro, a expectativa é que o percentual alcance 5%.

No caso do Pão de Açúcar, diz Haas, a categoria “cage-free” está atraindo um público intermediário, que se importa com questões como a sustentabilidade mas não pode ou quer pagar mais por ela. Esses ovos valem hoje nas gôndolas da rede R$ 6,89 a caixa de dez unidades, contra R$ 5,99 pela caixa com 12 unidades dos ovos convencionais, produzidos por galinhas presas. A caixa com dez unidade s dos ovos caipira custa R$ 5,99 e a de ovos orgânicos, “top do top”, R$ 13,00.

As margens estão controladas num esforço comum de lançamento e sensibilização do consumidor, mas poucos no setor avícola acreditam que será no mercado in natura, voltado ao consumidor, que o selo “cage-free” fará a diferença. “Os custos de produção serão de 30% a 40% superior ao do ovo convencional. E quem, de fato, está disposto a pagar? O ovo vai ficar o preço de um frango”, disse Fábio Yabuta, dono da Yabuta, outra gigante da avicultura brasileira, com sede em Bastos (SP).

Mas a Yabuta planeja investir R$ 40 milhões em duas novas granjas em Novo Horizonte do Sul (MS) e, por via das dúvidas, uma delas será sem gaiolas. A capacidade de alocação de aves explica o porquê da diferença de preços: enquanto a granja com gaiolas receberá 1.25 milhão de aves, a sem gaiolas terá 360.000.

A mudança, ao contrário, ocorrerá pela demanda da indústria, que compra os ovos processados para a fabricação de seus produtos e é capaz de diluir elevações no preço de certos insumos em sua composição final de custos. “É por isso que a mudança nos processos de produção de ovos não será generalizada”, disse Pinto. “A indústria representa de 15% a 20% do mercado de ovos. A maior parte vai para o consumidor”.

O Pão de Açúcar, por sua vez, acredita que o preço mais atrativo fará com que ovos “cage-free” superem as vendas dos orgânicos já em meados de 2018, mantido o ritmo atual de vendas. O raciocínio é de uma migração de nichos, não de aumento no consumo de ovos.

Por falta de regulamentação, a Mantiqueira e a Yabuta adotaram regras de bem-estar da Certified Humane, que abriu escritório em São Paulo no ano passado na esteira da pressão por mudança nas granjas. Certificadora de marcas conhecidas como Korin e a linha brasileira de frangos do chef inglês Jamie Oliver, a empresa registrou alta expressiva nas buscas sobre a certificação de aves sem gaiolas.

Luiz Mazon, presidente da Certified Humane, diz que os acessos no site por informações sobre galinhas “cage-free” totalizaram 8.300 em agosto, contra 5.900 para demais certificações. Em julho, quando o site foi lançado, a proporção era de oito mil para quatro mil. E os pedidos de visitas a propriedades começaram a despontar nos vizinhos Argentina, Chile e Colômbia.

“Se todas as indústrias mantiverem esse compromisso, isso significará 223 milhões de galinhas fora de gaiolas até 2025 só nos EUA, um custo de conversão de US$ 10 bilhões. É algo monumental para a indústria”, disse Larry Sadler, vice-presidente para bem-estar animal da United Egg Producers (UEP), em um evento recente em Nashville. Nos EUA, só 9,3% das galinhas poedeiras são criadas fora de gaiolas, segundo dados do governo.

Dizendo-se vanguardista, Pinto, do Mantiqueira, tenta não demonstrar preocupação: “Vou acabar agradecendo a esses ambientalistas”, disse ele, referindo-se às ONGs de bem-estar animal.

 

Fonte: Valor Econômico

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