A SALVAÇÃO NA LAVOURA. Por Evaristo de Miranda

O Cerrado brasileiro é uma savana rica em biodiversidade, com árvores retorcidas e vegetação resistente, cobrindo grande parte do Centro do Brasil. Imagem: Pixabay

Com a modernização agrícola, o crescimento econômico chegará a milhares de produtores rurais pobres no Cerrado no Maranhão, Tocantins, Piauí e Minas Gerais

 

Something isrotten in the state of Denmark. (“Algo vai mal no reino da Dinamarca”)

Hamlet Act I, sceneIV (67)

 

A produção de alimentos e fibras pelo agronegócio no Cerrado é uma das mais sustentáveis do planeta. E atrai o interesse de europeus e países africanos. Dia 4 de outubro,Mary Elizabeth Donaldson, consorteda Dinamarca(monarquia com mais de 1.000 anos de história) e primeira australiana a tornar-se rainha na Europa, visitou a Embrapa Cerrados, para conhecer as bases desse sucesso do agro. Já por aqui, esse sucesso ambiental e tecnológico é objeto de ataques constantes de ongs “verdes”, autoridades ambientais e boa parte da mídia. Hvorfor?

O chefe geral da Embrapa Cerrados, Sebastião Pedro, e sua equipe apresentaram à rainha da Dinamarca as tecnologias desenvolvidas, sua contribuição ao estabelecimento e ao futuro da agricultura sustentável no Cerrado. Países africanos, com savanas semelhantes ao Cerrado, pedem e sonham coma transferência de tecnologias brasileiras para sua agricultura.

O Brasil é o único país a considerar a dimensão ambiental, pelo recorte geográfico dos biomas, no planejamento, na gestão e na legislação territorial. O país foi dividido em seis biomas: Amazônia, Cerrado, Caatinga, Pantanal, Mata Atlântica e Pampa. O termo foi criado pelo botânico norte-americano Frederic Edward Clements, em 1916. Pergunte a um norte-americano: quais os biomas dos EUA? No idea. Pergunte a um europeu se a Comissão Econômica em Bruxelas considera biomas em suas políticas? As chances são de 120% deles nunca terem ouvido falar nisso. Como parte das exigências do Código Florestal,muitas aplicações dos biomas são como as saborosas jabuticabas. Só existem no Brasil.

O Cerrado é o segundo bioma em extensão territorial. Com203.644.800 hectares ou mais de 2 milhões de quilômetros quadrados, ele está presente em 12 estados e Distrito Federal. É quase um quarto do Brasil (23,9%). Mato Grosso, Minas Gerais e Goiás reúnem mais de 50% do Cerrado. Tocantins, Goiás e Distrito Federal têm mais de 90% de suas áreas no Cerrado. Ele abriga afluentes de oito bacias hidrográficas brasileiras. E Brasília, a capital federal, reina no centro do bioma.

Ao atacarem o agronegócio no Cerrado, a mídia, ongs ou tudólogos (especialistas em Covid, Ucrânia, Amazônia, desmatamento, mercado de carbono, incêndios, reforma tributária etc.) sugerem medidas repressivas e ações simplistas para barrar a agricultura. Eles o imaginam do tamanho de uma chácara de final de semana. O Cerrado é complexo, diverso e dinâmico. Não admite simplismos. Pero que loshay, hay…

Para ter-se uma ideia da sua complexidade, as chuvas no Cerrado variam de cerca de 550 mm no vale do rio São Francisco na Bahia até mais de 2.500 mm no Oeste do Mato Grosso. Temperaturas médias anuais variam de 16 graus no Paraná e montanhas de Minas Gerais a até quase 28 graus no Maranhão. A altimetria vai de regiões próximas ao nível do mar no Tocantins e Maranhão até outras a mais de 1.600 metros em Minas Gerais. A mesma diversidade é encontrada em dezenas de classes de solos. Da combinação desses fatores ambientais resultam dezenas de tipos de vegetação ou fitofisionomias: desde florestas pluviais densas até campos limpos e rupestres, passando por savanas parque, arbustivas etc. São paisagens em transformação há milênios pelo uso do fogo por caçadores-coletores, pela introdução da pecuária no século XVII, até a dinâmica agrícola viabilizada pelas tecnologias da Embrapa no século XX.

O Cerrado está preservado. O mapeamento do uso e ocupação das terras no Cerrado realizado pelo Projeto TerraClass, por instituições como INPE, Embrapa e Universidade Federal de Goiás entre outras, apontam para um bioma preservado:52,2%de vegetação nativa em 2022; 30% com pastagens; 3,9% com florestas plantadas e cultivos perenes, e 12% em cultivos anuais (soja, milho, algodão, arroz, feijão, hortaliças…).

O Cerrado é protegido e atribuído. Ali, decretadas e implantadas pelo Poder Público, existem 366 unidades de conservação integral (parques nacionais, estações ecológicas etc.) num total de 16.795.934 ha de terras públicas. E,também, 106 terras indígenas demarcadas, num total de 9.550.555 ha. Descontadas as sobreposições, são 26.240.203 ha de terras protegidas. Além disso, o Estado desapropriou e/ou atribuiu terras para 1.679 assentamentos de reforma agrária num total de 6.385.750ha, além de mais 646.155 ha para 71 comunidades quilombolas. Por fim, duas áreas militares, 164.980 hectares, completam o quadro de terras atribuídas.

O Cerrado queima. De 1 de janeiro a 6 de outubro foram detectadas 70.798 queimadas e incêndios no bioma, um recorde histórico e um crescimento de 82% em relação ao ano passado (38.710), convergente com o aumento do fogo em todo o país em 2024 (80%). A concentração dofogoem terras públicas foi enorme (parques, terras indígenas, assentamentos agrários…). Como em outras partes do país, há um caos administrativo. A demonstração da incapacidade do Estado de gerir adequadamente mais de 33 milhões de hectares de terras públicas no Cerrado é evidente. Como cuidar de 2.224 áreas em cinco categorias tão distintas (meio ambiente, índios, reforma agrária…) e combater o fogo? Essa responsabilidade envolve pelo menos seis ministérios no atual Governo, com propostas diferentes e,em parte, com objetivos divergentes no Cerrado.

A ausência de coordenação e arbitragem interministerial é mais grave ainda na criação de novas áreas federalizadas: sobreposições, amputação de territórios municipais e estaduais, desconhecimento da realidade local etc. Em primeiro lugar, o Governo deveria demonstrar alguma capacidade em cuidar das terras públicas, e aplicar a si mesmo multas, acusações e sanções tão generosamente distribuídas no mundo rural.

Pesquisa da Embrapa, baseada em dados oficiais, públicos e abertos, permitiu avançar no conhecimento do mundo rural e de sua contribuição à preservação ambiental do Cerrado. A Embrapa trabalhou dados de 807.808 estabelecimentos agropecuários doCenso Agropecuário do IBGEe de 1.240.688 imóveis rurais registrados no Cadastro Ambiental Rural(CAR). Todos no bioma Cerrado.

Aanálise estatística e geocodificada das coordenadas geográficas de cada estabelecimento agropecuário do IBGE edos polígonos dos imóveis rurais detectou 204.394estabelecimentos não registrados no CAR. Disso resultou um conjunto identificado de 1.445.082 unidades rurais no Cerrado. A maioria são propriedades, com matrículas registradas no INCRA. Há também, outras unidades rurais em diferentes condições legais (posseiros, arrendatários, assentados…). No total, elas ocupam 184.176.233 hectares ou 91% do bioma.Nem toda terra ocupada pode ser utilizada.

O Código Florestal obriga destinar à preservação da vegetação nativa áreas de reserva legal e de preservação permanente. Além disso, existe vegetação excedente (acima dos 20% exigidos por lei, p. ex.) em muitas unidades rurais. O uso das terras (lavouras e pastos) alcança de 106 milhões hectares,57%% das terras ocupadas e 52% do bioma. Na média, o produtor rural destina 43% de seu imóvel à preservação da vegetação nativa no Cerrado, muito acima do exigido pelo Código Florestal.

As unidades rurais dedicam à preservação da vegetação nativa 78 milhões de hectares (38,6% do Cerrado). Agregadoos 6,4% das pastagens nativas, chega-se a45% da vegetação do Cerrado preservada pelo mundo rural.Bem acima da média nacional (33,2%). Com os 7% de áreas protegidas, totaliza-se 52% de vegetação nativa no Cerrado, valor convergentecom o obtido por outros métodos noProjeto Terraclass: 52,2%.

Com os preços da terra em cada município,a Embrapa Territorial calculou o valor fundiário imobilizado pelos produtoresem áreasdedicadas a vegetação nativa. Há vários cenários no estudo. Em valor fundiário pleno,os produtores imobilizamno Cerrado cerca R$ 2 trilhões de seu patrimônio em prol do meio ambiente, sem qualquer compensação. Não há uma só categoria profissional no Cerrado (advogados, juízes, jornalistas, médicos, engenheiros…), a dedicar tanto de seus recursos privados à preservação.

No Cerrado, parte dos 12% com cultivos anuais, produz de forma intensiva.E muito. Em 8,7% pratica-se mais de um cultivo por ano. Em 2022, o Cerrado produziu 55% da soja brasileira, 50% do milho, 53% do café arábica e 49% da cana de açúcar.Dos 1103 municípios no bioma, treze garantem 25% da produção de soja eoito,25% do milho. Do algodão brasileiro, 86% são produzidos no Cerrado. Três municípios reúnem 25% da produção. Com mais cinco chega-se a 50%. Ou seja,0,7% dos municípios do Cerrado concentram metade da produção da fibra.Em 2022, 43 municípios (3,9% do total) garantiram 50% da produção de soja, milho e algodão. O Cerrado reúne 34% do efetivo bovino do país, 25% em 48 municípios. Seus suínos e aves reúnem 20% doplantel nacional: 25% em sete municípios nos suínos e em oito nas aves.

Em 794 municípios do Cerrado (72%), a produção agropecuária ainda é extensiva e pouco significativa. O potencial de crescimento do agro é muito grande. O consórcio de interesses antinacionais com movimentos do atraso e do colonialismo impedem o desenvolvimento sustentável da agropecuária na Amazônia. Agora, voltam-se contra o agro no Cerrado, a bola da vez.

Grande parte da expansão recente da agricultura moderna no Cerrado ocorreu em locais já desmatados. Prosseguirá em pastagens e áreas antropizadas com topografia favorável à produção intensiva de alimentos.Tecnologias existem. Empreendedorismo também. É possível triplicar a produção atual. Com a modernização agrícola, o crescimento econômico chegará a milhares de produtores rurais pobres nos cerrados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Minas Gerais. Para alguns brasileiros, isso seria um crime (sic).Somethingisrotten in thestateofDenmark.

Seja qual for o cenário futuro, áreas agrícolas e produtores cumprem e cumprirão o mais relevante papel na preservação dos cerrados: tanto pela extensão já preservada nos imóveis (muito superior à existente em áreas protegidas), como pela conexão ecológica viabilizadapor sua ampla repartição espacial nas terras agrícolas entre os blocos isolados de áreas protegidas.E cumprirão seu papel na alimentação saudável e barata dos brasileiros e da humanidade. A salvação dos cerrados está na lavoura.

Evaristo de Miranda é pesquisador e Doutor em Ecologia.  Membro da Academia Nacional de Agricultura.  https://evaristodemiranda.com.br/
Artigo publicado anteriormente na revista Oeste e gentilmente cedido pelo autor a SNA
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