Por Evaristo de Miranda*
Nenhum país dedica mais território à proteção da vegetação nativa do que o Brasil. E a manutenção das florestas deve-se muito à Coroa portuguesa. No século 16, as Ordenações Manuelinas reuniram toda a legislação portuguesa, com vários artigos de proteção às florestas e até proibição do uso do fogo (livro V, tit. 83). A Coroa portuguesa estendeu sua aplicação ao Brasil. O corte de árvores madeireiras só podia ocorrer com autorização legal. Havia uma lista das chamadas árvores reais preservadas. Daí deriva a expressão madeira de lei: evoca a madeira protegida pela lei desde os primórdios do povoamento português no Brasil.
Alvarás, regimentos, ordenações e outros instrumentos dos governadores-gerais enriqueceram esse embrião de legislação ambiental. O Regimento do Pau-Brasil, de 1605, foi a primeira lei de proteção florestal. Ciente das desordens e abusos na exploração do pau-brasil, de como a árvore se tornava rara e as matas se degradavam, El-Rei fez o Regimento, após tomar “informações de pessoas de experiência das partes do Brasil, e comunicando-as com as do Meu Conselho”.
“Primeiramente Hei por bem, e Mando, que nenhuma pessoa possa cortar, nem mandar cortar o dito pau-brasil, por si, ou seus escravos ou Feitores seus, sem expressa licença, ou escrito do Provedor Mor de Minha Fazenda, de cada uma das Capitanias, em cujo distrito estiver a mata, em que se houver de cortar; e o que o contrário fizer incorrerá em pena de morte e confiscação de toda sua fazenda.”
O Regimento previa penas pesadas a quem excedesse sua licença de corte. O excedente era sempre confiscado. Acima de 10 quintais, multa de 100 cruzados. Mais de 50 quintais, açoite e degredo por dez anos em Angola. Ultrapassando 100 quintais, pena de morte e perda da fazenda. O Regimento ainda criou uma espécie de auditoria independente: uma devassa anual da Coroa sobre a administração e os administradores do corte do pau-brasil, seus registros, autorizações anuais…
Manejo sustentado
Essas e outras medidas permitiram o manejo sustentado das matas de pau-brasil por três séculos. A exploração da espécie não foi sinônimo de desmatamento, como pensam alguns, mas garantiu a manutenção da floresta atlântica até o século 19. O último carregamento de pau-brasil foi exportado em 1875. A exploração não cessou devido ao desaparecimento da espécie, mas por razões comerciais: perda de competitividade da tinta vermelha produzida com a madeira, devido à entrada das anilinas no mercado de tinturaria.
As políticas florestais da Coroa portuguesa e do Império do Brasil lograram manter a cobertura vegetal quase intacta até o final do século 19, com poucos locais alterados. Já no século 20, apenas entre 1985 e 1995, a mata atlântica perdeu mais de 1 milhão de hectares, mais do que a área desmatada ao longo de todo o período colonial!
Segundo Carlos Castro, autor de doutorado na Universidade de Brasília sobre a gestão florestal no Brasil, de 1500 aos nossos dias, “em vez de imputar a Portugal a culpa por ter nos deixado uma herança predatória, talvez devamos aprender com as práticas conservacionistas que os portugueses preconizaram e tomarmos consciência de que a destruição das florestas brasileiras não é obra de 500 anos, mas principalmente desta geração”.
Áreas protegidas
Nas três últimas décadas, nossa herança florestal ganhou segurança com a criação de áreas protegidas pelo Poder Público. O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Unep) considera como áreas protegidas as unidades de conservação da natureza e as terras atribuídas a populações tradicionais, como esquimós, aborígines e indígenas.
Entre os países, a definição das unidades de conservação da natureza varia bastante e inclui diversas categorias de proteção. Nos parques naturais europeus, a presença humana e atividades econômicas são possíveis sob certas restrições, incluindo cidades, agropecuária e várias atividades. No Brasil, apenas as Áreas de Proteção Ambiental (APAs) permitem atividades e, em grau menor, as reservas extrativistas. As unidades de conservação integral, como estações ecológicas ou parques nacionais, excluem presença humana ou atividade econômica.
Até a promulgação da Constituição Federal de 1988 existiam 248 unidades de conservação, ocupando área total de 198.599 quilômetros quadrados, ou 2,3% do Brasil. Em 30 anos, elas foram multiplicadas por oito. Hoje são 1.871 unidades de conservação federais, estaduais e municipais, incluindo APAs. Elas ocupam 1.544.333 quilômetros quadrados, ou 18% do país.
Até a Constituição de 1988, havia 60 terras indígenas decretadas, somando 161.726 quilômetros quadrados, ou 1,9% do Brasil. Hoje são 600 terras indígenas numa área total de 1.179.561 quilômetros quadrados, ou 14% do Brasil.
Unidades de conservação e terras indígenas constituem as áreas protegidas do Brasil. Descontadas sobreposições de limites, existentes sobretudo na Amazônia, são 2.471 áreas protegidas, num total de 2.584.808 quilômetros quadrados, ou 30,3% do território nacional. Em sua imensa maioria, são terras públicas. E foram definidas e decretadas pelo Poder Público.
A extensão dessas áreas protegidas equivale a 54% do território europeu ou à soma das áreas de 15 países: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Eslovênia, Eslováquia, Espanha, França, Grécia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Holanda, Portugal e Reino Unido.
O Brasil ocupa 6,3% das terras continentais do planeta e suas áreas protegidas representam 12,3% das existentes. Quinta nação em extensão territorial, o Brasil é a primeira em áreas protegidas. Entre os dez países de maior dimensão territorial —Rússia, China, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Índia, Argentina, Cazaquistão e Argélia —, o Brasil protege mais. A média das áreas protegidas desses países é de 11,0%, contra 30,3% no Brasil. A proteção ambiental brasileira é quase três vezes maior.
Conforme dados da Unep, em grande parte, as áreas protegidas estão localizadas em terras marginais: desertos desabitados (China, Austrália, Argélia, EUA), regiões polares e subárticas (Alasca, Sibéria) e montanhas inaptas à ocupação humana (Andes, Rochosas).
No Brasil, porém, a maioria das áreas protegidas reúne terras com potencial madeireiro, agropecuário e mineral. A dificuldade em manter sua integridade é grande em face das demandas sociais e das pressões econômicas, sobretudo na Amazônia. Cuidar dessa extensão territorial é um enorme desafio de gestão.
Quem ajuda o Brasil nesse desafio? Como afirma o relatório da ONU sobre Áreas Protegidas no Planeta (UNEP Protected Planet Report): The most extensive coverage achieved at a regional level is for Latin America and the Caribbean (…). Half of the entire region’s protected land is in Brazil, making it the largest national terrestrial protected area network in the world.
O fato de o Brasil dedicar mais território do que qualquer outro à proteção da vegetação nativa não é conhecido, nem reconhecido. Paradoxalmente, o Brasil é o campeão de condenações em tribunais ambientalistas e midiáticos. E alvo constante de críticas por parte de países e organizações estrangeiras. Eles exigem maior proteção para as florestas brasileiras, em patamares jamais sonhados no próprio território. Como reagiriam os governos do Canadá, Índia, Rússia ou EUA se alguém lhes propusesse abrir mão de atividades econômicas em mais de 30% de seu território?
Com 66,3% de seu território com vegetação nativa, o Brasil tem autoridade para tratar desse tema ante as críticas dos campeões do desmatamento mundial. E há de ter, também, responsabilidade para reavivar, por meio de políticas e práticas duradouras, a eficácia das medidas históricas de gestão e exploração florestal tomadas desde a Coroa portuguesa, garantindo a manutenção das florestas primárias brasileiras.
*Evaristo de Miranda é doutor em Ecologia e chefe-geral da Embrapa Territorial.
Fonte: Revista Oeste