Apenas 3% dos mais de 6.4 milhões de registros no Cadastro Ambiental Rural (CAR) começaram a ser analisados até agora pelo governo e um número “mínimo” de propriedades recebeu o certificado definitivo. Sem uma base de dados única com o mapeamento do País, as autoridades ainda não conseguiram implantar um sistema para checar as informações fornecidas pelos donos de imóveis rurais desde 2014 e verificar quem está em dia com a lei.
Além de travar avanços na implementação do Código Florestal, o atraso nas análises dos dados do CAR deixa dúvidas sobre a sustentabilidade do agronegócio brasileiro, principalmente no exterior, e abre espaço para questionamentos que ameaçam as exportações do setor.
Agora, a meta do governo é concluir em 90 dias a criação de uma plataforma robotizada capaz de analisar mais de 60.000 cadastros por dia. A expectativa inicial era que essa etapa já tivesse sido finalizada em 2019.
O Programa de Análise Dinamizada do CAR pretende zerar a fila dos 543 milhões de hectares inseridos no sistema até o fim de 2022. Para isso, estão integrando mapas do Exército, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
“Vou trabalhar firme para colocar o CAR e o Código Florestal para funcionar. A hora que a gente fizer isso, vamos calar a boca do mundo”, disse a ministra Tereza Cristina em um evento na semana passada, em Brasília. “Ninguém tem essa ferramenta, ninguém tem esse cadastro que nós temos”, disse ela.
O atraso na implementação de ferramentas como o CAR e as constantes mudanças na lei ambiental fazem o Brasil andar para trás, dizem ambientalistas. Com o apoio dos ruralistas, lembram, o governo acabou, no ano passado, com o prazo para a inscrição do CAR.
Gabriela Savian, diretora-adjunta de Políticas Públicas do Instituto de Pesquisas da Amazônia (Ipam), disse que as alterações prejudicam os avanços do Código Florestal e passam aos produtores e à sociedade a mensagem de que a política ambiental nunca vai ser colocada em prática.
“Tirar o prazo fragiliza a importância do CAR. Tem proprietários que não aderiram pois preferem não passar informação”, afirmou Savian. Segundo ela, áreas que foram degradadas podem estar fora do Cadastro.
O Valor já mostrou, por exemplo, que um estudo recente do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) identificou que 12% da área de soja no Cerrado e na Amazônia (2.6 milhões de hectares) estava “fora” do CAR em 2017.
Segundo Nelson Ananias Filho, coordenador de Sustentabilidade da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), o produtor fez a parte no Cadastro. “O produtor aderiu, mostrou a cara e deu endereço. É isso o que nos separa de grileiros que exploram florestas inconsequentemente”.
A diretora do Ipam disse, porém, que só o Cadastro não é suficiente. “O CAR é declaratório, tem informações equivocadas. Precisa ser melhor qualificado e validado”.
A falta de um “certificado oficial” (a legislação não prevê emissão de certificação sobre a situação ambiental das propriedades rurais), tem atrapalhado a imagem do setor. Exportadores dizem que isso impede o país de carimbar seu agronegócio como sustentável e amenizar críticas internacionais e ameaças de embargos aos produtos brasileiros.
A CNA vai além: “Gostaríamos que o ativo nos rendesse pagamentos por serviços ambientais e outras vantagens”, disse Nelson Ananias.
O CAR não faz parte de acordos bilaterais ou setoriais, mas é requisito para a concessão de crédito rural por bancos públicos. Tradings e frigoríficos também já monitoram e cobram o cadastro em algumas situações, disse Gabriela Savian.
Valdir Colatto, diretor-geral do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), órgão responsável pelo cadastramento, reconhece as dificuldades. “Levamos oito anos para fazer o CAR e não concluímos. Imagina para analisar área por área?”.
Ele informou que entre 7% e 10% das propriedades do País ainda não foram cadastradas no CAR – a maior parte delas no Nordeste. A Bahia não registrou 15% dos imóveis, em geral da agricultura familiar. “Cerca de 95% dos que não aderiram ao cadastro são pequenos agricultores, sobretudo do Nordeste e do Amazonas”, disse Colatto.
Os assentamentos da reforma agrária e propriedades de comunidades tradicionais, como quilombolas e ribeirinhos, devem aumentar em mais um milhão o número de cadastros, pois apenas o perímetro total foi incluído no sistema, e não a divisão por lotes.
O dever de analisar o CAR é dos estados. Com dificuldades técnicas e falta de pessoal, poucos iniciaram o processo e, atualmente, todos estão parados nessa frente. Agora, o SFB tenta liderar o processo em nível nacional.
Com a estrutura atual, em Mato Grosso, por exemplo, a análise dos mais de 143.000 imóveis e 77 milhões de hectares cadastrados poderá levar 240 anos, segundo Colatto. Até hoje, 20.000 registros começaram a ser analisados e apenas 87 foram concluídos.
“Estamos planejando implantar o Programa de Análise Dinamizada. Colocamos todos os problemas que podem acontecer no sistema e um robô nos ajuda a analisá-los”, disse o diretor do SFB.
A ideia é cruzar os dados fornecidos no CAR com informações sobre vegetação, relevo e cursos d’água do país para identificar a regularidade ambiental das propriedades. Atualmente, esse trabalho “engenhoso” deve ser feito manualmente, e por isso pode demorar séculos.
Produtores sem passivos ambientais devem ser certificados automaticamente, e quem tiver áreas para recuperar será direcionado ao Programa de Regularização Ambiental (PRA). O sistema da Embrapa WebAmbiente, que mapeou espécies nativas de todo o país, será integrado para estabelecer estratégias de recomposição vegetal e adequação ambiental caso a caso, com prazos e condições específicas.
O Ipam apoia a iniciativa, mas ressalta a necessidade de reforço nas equipes para o trabalho a campo de correção dos cadastros e de regularização das áreas, principalmente junto aos agricultores familiares. Colatto disse que usará para isso a estrutura de técnicos de órgãos estaduais, municipais, cooperativas e entidades de assistência técnica.
Governo busca saída para sobreposições de áreas
Outro problema que o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) tem de resolver para que as análises do CAR avancem diz respeito às sobreposições. Mais de 12 milhões de hectares declarados no sistema estão em terras indígenas, 60 milhões ficam dentro de Unidades de Conservação (UC) e 49 milhões estão em áreas embargadas.
O diretor do SFB diz que ainda é preciso mapear algumas áreas públicas, e que terá de cadastrar as pessoas que estão dentro de Unidades de Conservação e não foram indenizadas pelo governo. Colatto afirma ter encontrado uma solução para resolver o impasse nessas unidades com ajuda do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
“O produtor que tem área dentro de UC e não recebeu indenização do governo, pegará um certificado no ICMBio mostrando que é dono da terra e buscará um comprador para essa área. Outro produtor que tem déficit, um passivo ambiental, poderá comprar essa área e devolvê-la ao ICMBio”, disse. “Na prática, alguém paga pelo o que o governo não pagou”.
A regra não será utilizada para as terras indígenas, garante Colatto, que prefere deixar o tema para outras instâncias do governo. O mesmo vale para os casos de conflitos fundiários. “Deixa o Incra resolver”.
A ideia de Colatto é que o extrato da análise do CAR permita ir além de um atestado de regularização. Ele quer agilizar também as compensações entre quem tem ativo ou passivo ambiental. O principal instrumento devem ser as Cotas de Reserva Ambiental (CRA), títulos que permitem a negociação de áreas extras de vegetação. A pretensão é transformá-lo em moeda verde, os “green bonds”.
Essa proposta, no entanto, também depende de uma nova regulamentação estudada junto ao Banco Central, do mercado financeiro e de orientações internacionais, e deve ser apresentada à ministra Tereza Cristina, em um pacote, em 90 dias.
Ananias Filho, coordenador da CNA, afirmou que é hora de o governo atestar que as declarações traduzem a realidade e comprovar a existência de um ativo ambiental. Segundo ele, cerca de 25% da vegetação nativa do país está dentro de propriedades rurais privadas.
Segundo Colatto, são 226 milhões de hectares de vegetação em propriedades rurais, e um passivo declarado de 161 milhões de hectares. “Teríamos 70 milhões de hectares a mais do que o passivo só dentro das propriedades. Vamos tirar mais terras produtivas e plantar florestas ou vamos fazer as compensações de maneira a olhar a paisagem em si?”.
Na regulamentação a ser proposta, as pequenas propriedades, com até quatro módulos fiscais, poderão transformar qualquer ativo ambiental, ou seja, qualquer área com vegetação preservada, em CRA. Pela lei, essa categoria de produtores é dispensada da obrigatoriedade de manter a Reserva Legal. “É um estímulo para deixar a floresta em pé e receber por isso”, disse o diretor do SFB.
O plano de Colatto também prevê tirar do papel benefícios previstos no Código Florestal ao produtor que preservar ou recuperar passivos, como isenções no Imposto Territorial Rural (ITR) e no Imposto de Renda e juros mais baixos.
Valor Econômico