Três fatores têm sido apontados como vetores que teriam desencadeado a crise dos combustíveis e a greve dos caminhoneiros: a recessão intensa e prolongada; o repasse da alta do preço do petróleo no mercado internacional, combinada com a desvalorização do real, e as políticas de subsídio à compra de caminhões. Mas, para alguns economistas e pesquisadores associados do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV), os dois primeiros fatores foram os que de fato pesaram mais na conta.
“Essa crise parece ter sido muito mais falta de demanda do que excesso de oferta”, disse Braulio Borges, economista-sênior da LCA Consultores e pesquisador do Ibre/FGV. “Com o agravante de que o transporte rodoviário tem um perfil de demanda que fez com que fosse muito mais afetado pela recessão do que a média da economia.”
Em 2017, por exemplo, o PIB ficou 5,2% abaixo do registrado em 2014. Em cálculos feitos pelo economista, o PIB “mais relevante” para o transporte rodoviário ficou 11,2% abaixo do patamar em que estava em 2014. Esse PIB “mais relevante” inclui o desempenho de agropecuária, indústria de transformação, comércio e importação de bens. “Ou seja: se o hiato do produto (medida do grau de ociosidade da economia) já está bem negativo na economia como um todo”, ele é, segundo Borges, ainda maior no caso dos transportes.
Quando tentou analisar a existência de excesso de oferta, Borges verificou que o preço médio dos fretes em termos reais se manteve entre 2014 e 2016 em nível semelhante ao de 2010 e 2011, “apesar da forte recessão”. No biênio 2010-2011, o transporte por 1.000 quilômetros da tonelada de granéis agrícolas custava pouco menos do que R$ 145,00. Entre 2014 e 2016, esse valor ficou, em média, pouco abaixo de R$ 150,00.
Além disso, o frete médio aumentou em termos reais “quase que ininterruptamente entre 2005 e 2014”, com um recuo “moderado” durante a recessão. Esses movimentos sugerem, segundo o economista, “que não parece existir um excesso significativo de oferta de caminhões na economia brasileira”. Para Borges, “se fosse assim, os preços reais dos fretes deveriam ter recuado expressivamente, sobretudo entre 2011 e 2014”, quando houve crescimento mais expressivo da frota.
Há alguns dias, ao comentar o corte do preço do diesel nas refinarias estabelecido pelo governo, o coordenador de economia aplicada do Ibre-FGV, Armando Castelar Pinheiro, já havia chamado a atenção para o quanto a recessão explicava a crise dos combustíveis. “Tudo isso que foi feito (pelo governo) é um espantalho. O problema real é uma economia deprimida”, disse.
A recessão não afetou os caminhoneiros em apenas uma frente. Em relatório, a equipe econômica da AC Pastore lembra que os preços mercado internacional subiram 20% em pouco mais de dois meses, atingindo US$ 80,00 o barril. O movimento aliado à desvalorização do câmbio levou o preço do petróleo no mercado interno “ao nível mais alto” desde que o real entrou em vigor. Castelar, do Ibre-FGV, lembra também que a última vez em que houve uma combinação dessa magnitude entre petróleo caro e câmbio desvalorizado foi há 15 anos.
A lenta recuperação econômica, por sua vez, limitou o repasse da alta para os contratantes dos fretes. Isso impediu que o encarecimento do combustível tivesse impactos inflacionários perceptíveis, mas reduziu a margem de lucro dos caminhoneiros, desorganizando o setor.
A queda da demanda em 2014, segundo Maurício Lima, sócio-diretor do Instituto de Logística e Supply Chain (Ilos), foi acompanhada já no ano seguinte pelo recuo no licenciamento de caminhões, o que ajudou a controlar a oferta. De 2013 até 2016, os emplacamentos passaram de 154.500 para 50.200, queda de 67,5%, segundo a Federação Nacional de Distribuição de Veículos (Fenabrave). De acordo com Lima, em 2015 e 2016 os emplacamentos foram insuficientes até para cobrir a taxa de depreciação do setor.
Desde maio do ano passado, porém, Lima diz que a demanda pelo transporte rodoviário vem se recuperando mais rapidamente do que setores como a indústria. “Há uma restrição de outros modais”, o que deixa os produtores reféns do transporte sobre rodas, segundo o diretor da Ilos.
Borges, da LCA, acrescenta que, na comparação entre o acumulado de janeiro a maio deste ano com o mesmo período do ano passado, há uma alta de 54% dos licenciamentos de caminhões. No dado dessazonalizado, o licenciamento em maio ficou na casa das 70 mil unidades, “claramente acima da depreciação do estoque”, em torno de 50.000 unidades. Tudo isso, segundo ele, reforça a ideia de que não houve excesso de oferta.
Para Nelson Barbosa, ex-ministro do Planejamento e da Fazenda durante o governo Dilma Rousseff e também pesquisador do Ibre-FGV, o Programa de Sustentação de Investimentos (PSI) pode ser criticado por seu custo fiscal, mas não faz sentido responsabilizar pelos problemas atuais um programa que teve o seu auge há cinco anos.
“A crítica do custo fiscal é uma crítica válida. E é óbvio que, se houvesse menos caminhões, haveria menos oferta. Mas não dá para ignorar o elefante no meio da sala. E o elefante no meio da sala é o aumento do imposto sobre combustíveis e da cotação internacional do petróleo, combinada com a desvalorização do câmbio”, afirmou o economista.
Barbosa lembra que, adicionalmente a uma alta de tributos feita à sua época, em fevereiro de 2015, o governo Temer, premido pela falta de recursos, elevou novamente o PIS/Cofins sobre os combustíveis em julho de 2017.
“Não houve greve na época porque o preço do petróleo estava algo estável”, disse. Naquele momento, a Petrobras já havia mudado a política de preços, primeiro repassando periodicamente as oscilações do mercado internacional, e depois diariamente. Quando ocorre a disparada do petróleo em 2018, juntam-se as duas coisas: imposto e cotação internacional.
Borges, da LCA, admite que existem indícios de que pode ter havido “uma expansão excessiva da frota” de caminhões. Um deles é que a carga média por caminhão caiu 3,9% no biênio 2012-2013 em relação ao período 2003-2011. O analista diz, no entanto, que “a queda pode ter decorrido, ao menos parcialmente, da maior utilização de ferrovias e outros modais”.
Borges ressalta ainda que a situação dos caminhoneiros se agravou de vez com a alta dos preços do combustível. Nos cálculos dele, os custos do setor de transporte de cargas rodoviárias subiram 4% acima do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) entre meados de 2016 e abril deste ano.
Frota teve expansão compatível com o PIB, diz BNDES
Estudos feitos pelo BNDES mostram que entre 2011 e 2017 a expansão da frota de caminhões foi, em média, de apenas 2,8% ao ano, percentual comparável ao PIB potencial do país. De 2015 até agora, a frota está parada em 1.9 milhão de caminhões. Entre 2011 e 2014, o frete subiu de R$ 137,00 para R$ 167,00. Na realidade, o frete teve um movimento errático, com valores no período de 2014 a 2016 superiores aos que eram cobrados entre 2010 e 2011.
O que originou a paralisação dos caminhoneiros, segundo o banco, foi o aumento de custos, sobretudo dos combustíveis, que não pode ser repassado para o preço do frete por causa da baixa atividade da economia.
Para o presidente do BNDES, Dyogo Oliveira, sem um diagnóstico certo as decisões de governo podem ser erradas. Se tivesse havido excesso de oferta de caminhões, artificial, decorrente do financiamento ultrassubsidiado do banco, como indicaram alguns economistas, os preços teriam caído.
O trabalho do BNDES procura responder se os financiamentos do Programa de Sustentação dos Investimentos (PSI) a juros de 2,5% ao ano, que vigoraram no segundo semestre de 2012, estariam na raiz da crise que levou à paralisação dos caminhoneiros.
Um evento importante que mexeu com a demanda foi a transição da tecnologia dos motores a diesel, de 2011 a 2012, no âmbito do programa Proconve-P7, que levou à troca de motores a diesel por modelos mais avançados e menos poluentes. Isso representou uma antecipação da produção para o fim de 2011, com a consequente queda da produção no ano seguinte.
No passo a passo elaborado pelo estudo, a resposta final é que “não há evidência suficiente que ampare a existência de um significativo excesso de oferta de caminhões no país”
Na contramão do senso comum, o presidente do BNDES, Dyogo Oliveira, contesta, também, que a solução para o país seja a construção de ferrovias para substituir o transporte rodoviário de cargas. Segundo ele, um terço da malha ferroviária existente no Brasil é subutilizada, por insuficiência de carga para ocupá-la.
“A geografia do país não favorece o uso de ferrovias, pois as distâncias são muito grandes e não há fluxo contínuo de cargas”, disse. A Ferrovia Norte-Sul está em construção há 30 anos, já consumiu R$ 30 bilhões e “ela não se paga”, disse Oliveira.
A navegação de cabotagem é, para o presidente do BNDES, o meio de transporte mais adequado para transitar com cargas no Brasil, mas as restrições regulatórias são tantas que inviabilizam o seu uso. O navio tem de ser construído no País, a tripulação tem de ser local, dentre outras exigências.
Para se ter um parâmetro de como é caro o transporte rodoviário, uma carga de Mato Grosso ao porto de Miritituba, no Pará, custa R$ 220,00 a tonelada. Do porto até Xangai, na China, o frete cai para a faixa de US$ 25,00, equivalente a cerca de R$ 92,00.
O transporte de cargas no Brasil continuará, no entanto, sendo feito por caminhões nas próximas décadas. As greves de caminhoneiros ocorrem a cada três anos e, desta vez, segundo Oliveira, o movimento ocorreu porque os caminhoneiros não conseguiram repassar para o frete o aumento de custo com combustíveis. A conclusão do trabalho do BNDES é que não há excesso de caminhões rodando pelas estradas. O que há é uma economia que não cresce.
Fonte: Valor Econômico