Produção de biodefensivo ‘caseiro’ na berlinda

Uma nova frente de batalha se anuncia no campo brasileiro. E não será com gigantes de agroquímicos, comumente às turras com produtores por disputas de royalties e pacotes tecnológicos cada vez mais caros, nem ambientalistas. Desta vez o embate se dará com a alternativa do meio: a indústria nacional de biofedensivos.

A ABCBio, associação que reúne as empresas de controle biológico no país, promete entrar nesta semana com uma representação no Ministério Público Federal contra a prática atual de colonização doméstica de bactérias em fazendas de grãos, mas também de legumes e verduras.

Chamado de “produção on farm”, o movimento cresceu de forma significativa nos últimos três anos. Estimativas da Embrapa apontam que a área agrícola tratada com micro-organismos reproduzidos diretamente pelo produtor já seja 15 vezes maior que a área pulverizada com aqueles colocados oficialmente no mercado.

A associação alega que criar bactérias em casa representa um alto risco de contaminação, além da perda de receita para um setor que ainda engatinha globalmente frente aos agroquímicos convencionais. A representação pública é o segundo alerta – em setembro do ano passado, a entidade já havia protocolado um parecer no Ministério da Agricultura questionando a legitimidade da prática.

Segundo a ABCBio, até hoje o ministério não se manifestou. Procurada ao longo de uma semana, a pasta tampouco retornou aos pedidos de entrevista do Valor.

“Existe a ideia errônea de que é fácil fazer bactéria e que é baratinho”, disse Gustavo Herrmann, presidente da ABCBio. Mas trata-se de uma “pirataria anunciada”, adverte o dirigente, na qual empresas de consultoria vendem ao produtor rural kits de culturas bacterianas acompanhados por manual de instruções. “O problema é que ele replica sem nenhum padrão estabelecido que garanta a sanidade do processo”.

Bactérias, fungos, vírus e outros micro-organismos presentes na natureza têm ganhado adeptos no campo por serem uma ferramenta menos agressiva, economicamente mais viável e eficaz no combate de pragas e doenças nas lavouras.

Segundo as empresas de controle biológico, o uso de biodefensivos ganhou ímpeto no Brasil após a infestação de helicoverpa em plantios de soja e algodão, em 2012. Só naquele ano, os produtores amargaram prejuízos de R$ 2 bilhões.

Foi um estalo importante para frear o menosprezo às vespas, nematoides e um tipo de vírus (importado às pressas na época) que faz a lagarta adoecer. Mesmo assim, os biológicos representam ainda apenas 2% dos US$ 9 bilhões do mercado de defensivos em geral no país.

“A colonização doméstica é a prova de que o controle biológico é eficaz. Mas reproduzir bactérias nas fazendas é um risco porque assim como crescem bactérias boas você pode ter as ruins também”, disse Patrick Vilela, sócio fundador da Gênica Inovação Biotecnológica, sediada em Piracicaba (SP).

“O medo é que exploda uma ‘Operação Biológico Fraco’. E como faremos?”, questiona Herrmann, em alusão à Operação Carne Fraca da Polícia Federal, que trouxe à tona escândalos de corrupção e sanidade em frigoríficos brasileiros.

A produção “on farm” de bactérias não é ilegal no Brasil. Ela passou a ser permitida com a regulamentação da Lei de Orgânicos, que impede o uso de produtos químicos no solo e permite que os agentes da natureza se encarreguem do equilíbrio e saúde da lavoura. O que os produtores estão fazendo, agora, é usar essa brecha também para a produção convencional.

Pelo menos seis bactérias estão sendo testadas dentro das propriedades rurais do país (ver infográfico). Como em todo movimento inicial, em grande parte dos casos a colonização ainda é feita de forma precária. O produtor primeiro faz um teste para, havendo sucesso, então pensar em investir na infraestrutura e qualificação da mão de obra. O que se vê, assim, são muitos casos de proliferação inadequada espalhadas pelo país.

O engenheiro agrônomo Rogério Aoyagui, de Formosa (GO), enumera as irregularidades: a colonização de bactérias é feita em caixas d’água ou baldões a céu aberto, sem isolamento; a água desses recipientes não é esterilizada; não há controle de temperatura; não há conhecimento taxonômico para identificação e contagem de células; não há microscópios. “Eles se guiam pelo PH e cor da água, mas isso nem sempre é determinante”.

O assunto chamou a atenção de Fernando Valicente, pesquisador da Embrapa Milho e Sorgo, em Minas Gerais. Em algumas semanas ele irá divulgar um levantamento realizado com amostragens de água de fazendas do Mato Grosso. “Isso começou a crescer de forma assustadora. Não sei quem teve a infeliz ideia de produzir bactéria a céu aberto, de qualquer jeito”, disse.

“Começaram a fazer porque o produtor se diz cansado da indústria e escravos de seus pacotes fechados de agricultura. Além do mais, estamos falando de um controle muito mais sustentável”, rebate Rose Monnerat, da Embrapa Recursos Genéticos, mostrando divergências na arena científica.

Dito de outra forma, os custos justificam os meios: um coquetel de seis bactérias comprado no mercado pode sair por R$ 700,00 por hectare. Um único fungo, R$ 140. “Ficou caro. Com o ‘on farm’ é possível substituir esse fungo por uma bactéria de eficácia similar ao custo de R$ 7,00 por hectare”, diz Aoyagui.

Para o presidente da ABCBio, esses custos tão baixos só são possíveis porque não há um padrão de qualidade pré-estabelecido na produção caseira. “Não é barato fazer quando se segue um padrão de qualidade”, disse.

Em outubro passado, Monnerat ministrou um workshop na unidade da Embrapa em Brasília para mostrar aos produtores o perigo de se produzir bactérias da forma errada. Na ocasião, 22 produtores se inscreveram. Mais oito cursos estão previstos ainda para este ano, devido à alta demanda.

“Até então nós não trabalhávamos nessa área, mas recebemos amostras contaminadas. A lei permite? Sim. Então não adianta brigar contra essa realidade. A Embrapa não legisla nada. Mas eu defendo que o governo crie uma norma específica para essa produção”, declarou a especialista.

Nas análises encontradas pela Embrapa foram identificados basicamente coliformes fecais e duas bactérias não previstas: a Enterococcus gallinarum e a Enterococcus casseliflavus, que podem provocar endocardite em animais, afirmou o pesquisador Fernando Valicente.

“Nossa preocupação é na reprodução de patógenos humanos porque não há, em muitos casos ainda, monitoramento”, disse Gleyciano Vasconcelos da GVBio, empresa que presta consultoria nessa área. No entanto, ele refuta o discurso alarmista sobre o tema. “Estamos em transição. Se o primeiro contato foi com a caixa d’água, muitos produtores já investem em equipamentos sofisticados”.

Caso da empresa da família de Aoyagui, que fechou a compra de um biorreator de R$ 1.5 milhão para a colonização de bactérias que possam ajudar no controle sustentável de pragas em suas plantações de soja e milho em Goiás. O grupo Amaggi, da família do ministro da Agricultura Blairo Maggi, também está em fase de estudos preliminares de produção de biofertilizantes em algumas de suas fazendas, conforme informou ao Valor.

Para esses, manipular seus próprios micróbios tornou-se parte da gestão e do manejo da propriedade. “Há espaço para todos. As empresas de biológicos precisam entender isso”, disse Vasconcelos.

 

Fonte: Valor Econômico

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