Iogurte e ilegalização do desmatamento. Por Evaristo de Miranda

Juergen Esser, a soja e a Danone / Foto: Montagem Revista Oeste/Divulgação/Shutterstock
Tout sera oublié et rien ne sera réparé.
Milan Kundera

Classificar o desmatamento da Amazônia entre legal e ilegal é tão útil como uma nota de três reais. Esse simplismo atenta contra a realidade. A maioria dos desmatamentos é apenas irregular, dada a quase impossibilidade, hoje em dia, de se obter uma licença para cortar a floresta. Veda-se o exercício de um direito, o de desmatar nos limites já rigorosos impostos pela legislação. Estado, mídia e ongs trabalham para ilegalizar agricultura e agricultores ao dificultar e impedir a regularização fundiária dos imóveis rurais na Amazônia. Esse eugenismo ambiental gera argumentos, aqui e no exterior, contra a presença brasileira na Amazônia e ameaça a soberania nacional sobre a região. Em geopolítica territorial, quem não ocupa, não possui.

O desmatamento na Amazônia é complexo, ligado à história e à expansão contínua da presença humana na região. Ignorância e criminalização não ajudam analisar esses processos e a buscar soluções para a população amazônida. Só serve nas narrativas criminalistas de tudólogos. O tudólogo é especialista em tudo. Opina sobre Amazônia, petróleo, Ucrania, Covid, carbono, pecuária… E vive distante dali, tão alhures quanto seus palpites. Até fabricante de iogurte europeu opina sobre desmatamento no Brasil.

Criminoso é considerar desmatamento ilegal aquele não licenciado por órgãos ambientais. Desmatamento legal não é apenas o autorizado por órgãos ambientais. Na Amazônia, o desmatamento verdadeiramente ilegal é pouco, muito pouco. Ele se resume essencialmente a dois casos: alguém desmata terra alheia, não de sua propriedade, para roubar madeira, por exemplo. Ou desmata mais de 20% do imóvel rural, excedendo o limite imposto pelo Código Florestal e não é um pequeno agricultor.

A ilegalização da reforma agrária está em curso. Sucessivos governos criaram na Amazônia um total de 2.406 assentamentos rurais e de reforma agrária. Neles foram assentadas 510.000 famílias. A quase totalidade desses produtores nunca recebeu o título de propriedade. Sem regularização fundiária, não existem. Não têm acesso à assistência técnica, ao crédito agrícola e à regularização ambiental.

Como um assentado pode solicitar autorização para desmatar a área onde foi instalado há anos pelo Estado, se não possui o título de propriedade? Para esse meio milhão de agricultores é impossível desmatar “legalmente”, mesmo uma pequena fração de seu imóvel. Ao desmatar, não cometem uma ilegalidade. Têm esse direito. Sua situação é irregular. Qual a proposta dos especialistas urbanos de plantão do Sul e Sudeste para resolver essa questão amazônica? Comando e controle, multas, mais exigências para autorizar desmatamentos?Ampliar a ilegalização de desmatamento e inviabilizar os assentados? Prosseguir na promoção desse eugenismo ambiental para desantropizar muitas áreas da Amazônia? Isso é a ilegalização promovida pelo ambientalismo. E nessa situação foi colocada muito mais gente, nas últimas décadas, além dos assentados da reforma agrária.

No século XX, milhares de agricultores (sem ou com pouca terra) foram incentivados a migrar do Sul, Sudeste e Nordeste e a se instalar na Amazônia. Colonizaram áreas designadas pelo INCRA. Receberam lotes de pequeno a grande porte em terras públicas no entorno de rodovias, de grandes barragens etc.A propriedade da terra seria assegurada quando o produtor se instalasse e desmatasse até 50% da área ocupada e cadastrada. Deveria atender também outras exigências (não possuir outro imóvel, não ser funcionário público…).

Esses pequenos, médios e grandes colonos rurais amazônicos aguardam até hoje suas escrituras.E muitos são filhos e netos de pais pioneiros já falecidos. Seus desmatamentos prosseguem, são irregularese legítimos. Não há como obter licenças. Na Amazônia, a regularização fundiária é a mãe de todas as batalhas para o acesso à sustentabilidade e à cidadania.

Recentemente, muitos vivem o drama de ver suas terras e comunidades“invadidas” por unidades de conservação ou demarcação de terras indígenas. Há unidades de conservação concebidas não por interesse ecológico, e sim para criar uma “muralha verde”à expansão do agronegócio, sem considerar a existência dos produtores rurais.

Da noite para o dia,esses produtores ganharam o título de “invasores” de terras. São objeto de uma violenta e desumana destruição de seus bens (casas, estábulos, armazéns…) e núcleos urbanos (escolas, igrejas, casas…), sem apoios para novas alternativas de vida. É a “desintrusão”, com apoio de polícias estaduais e federais, agentes do IBAMA, e com meios extraordinários (helicópteros, viaturas, armas, tratores, pás carregadeiras, drones…). Assim ocorre, desde 2023, sobretudo no Pará. Quem dera se 10% dessa “coragem” dos agentes federais e desses meios estatais fossem empregados no combate ao narcotráfico na Amazônia.

Não há qualquer esforço para facilitar e municipalizar as autorizações de desmatamentos legítimos. Não há nada para desburocratizar o processo. Não há ficha a ser preenchida, orientações ou procedimentos na Internet, como em outros direitos exercidos por um cidadão. Ninguém viu qualquer folheto ou cartilha orientar como obter uma autorização de desmate. Não é assunto da extensão rural. O objetivo é ilegalizar todo desmatamento, cada vez mais.

Mesmo médios e grandes produtores, com a documentação regularizada, solicitam a autorização de desmate e passam meses e anos sem resposta. Só com o protocolo e sem aprovação para exercer seu direito. Às vezes, a área técnica aprova e o secretário de meio ambiente não assina, por medo do ataque de ongs ambientalistas e da mídia. Teme ser execrado publicamente por autorizar desmatar a Amazônia, como se crime hediondo fosse.

Existe mais de um milhão de produtores rurais no bioma Amazônia. A Embrapa Territorial quantificou esses produtores ao integrar o Censo Agropecuário (IBGE, 2017), o Cadastro Ambiental Rural (CAR 2019) e dados adicionais do INCRA. Cada um, georreferenciado. Pará e Rondônia reúnem 56% do total. Mais de 89% são pequenos, com áreas inferiores a quatro módulos fiscais.

Para atender suas necessidades básicas e o crescimento demográfico das famílias, pequenos e médios agricultores abrem novas roças e pastos, como indicam estudos da Embrapa por mais de 30 anos na região. Inferiores a cinco hectares, esses desmatamentos crônicos não são detectados pelos satélites no Programa PRODES do INPE. Só quando a mancha coalescente ultrapassa seisou mais hectares, aí sim é detectada, mapeada e contabilizada.

Esses milhares de pequenos desmatamentos prosseguem e prosseguirão todo ano, com ou sem regularização. O sistema burocrático de ilegalização dos órgãos ambientais e ambientalistas ao impossibilitar a licença para desmate, marginaliza produtores e atua contra o desenvolvimento da Amazônia.

Os pesquisadores identificaram e quantificaram os desmatamentos entre 2010 e 2021. Em 12 anos, foram cerca de 346.000 locais desmatados. A média anual foi de 29.000 desmatamentos. Com mais de um milhão de agricultores, se cada desmate fosse obra de um produtor, ainda assim, menos de 3% estariam envolvidos! Mais de 95% dos produtores não participam do epifenômeno. Eas acusações ambientalistas são contra toda a agropecuária e todos os agricultores. Desmatar não é a marca da agricultura na Amazônia. Sua demanda é por regularização fundiária, a mãe de todas as batalhas econômicas, sociais e ambientais.

A imagem internacional negativa da agropecuária brasileira resultaria da falta de combate ao desmatamento ilegal, como advogam alguns? No exterior, o Parlamento Europeu foi além. Em nova legislação, a Europa estabeleceu restrições e sanções a produtos agrícolas importados, oriundo de áreas recentemente desmatadas. Pouco importa se legal ou ilegalmente. Para os interesses europeus, desmatamento legal ou ilegal, é tudo igual.

Exemplo recente deu o diretor financeiro da gigante francesa de produtos lácteos, a Danone. O Sr. Jurgen Esser,em 25 de outubro, afirmou: a Danone não comprará mais soja do Brasil e está livre de desmatamento, antes da entrada em vigor da Lei Antidesmatamento da Europa. “Danone estará menos exposta do que as suas rivais na questão da sustentabilidade”, disse ao provocar seus concorrentes. Sua soja livre de desmatamento viria da Ásia. As declarações, divulgadas pela Reuters, repercutiram no mundo e no Brasil.

Lideranças rurais tentaram dialogar com a Danone. Foram ignoradas. O ex-ministro da agricultura Antonio Cabrera lançou uma campanha em defesa da sustentabilidade da soja e da agricultura brasileira, denunciou as declarações mentirosas de Junger Esser e propôs aos consumidores boicotar os produtos Danone. O tema repercutiu nas redes sociais, diversos influenciadores defenderam o agro e atacaram a Danone. O Ministério da Agricultura emitiu nota oficial contra a declaração. A Aprosoja se pronunciou. O agro se organizou para responsabilizar judicialmente, na Europa, o Sr. Jurgen Esser.

Para PauloMartins da Embrapa, estudioso do setor lácteo desde 1982, esse comportamento reprovável, como o Danoninho, não vale um bifinho. A Danone “não busca interagir com os produtores e suas entidades, com os órgãos de pesquisa e extensão. É uma empresa ausente dos esforços do setor para se organizar. Nestas quatro décadas, raras foram suas iniciativas para desenvolver produtores, contribuir para a evolução da cadeia produtiva. (…) Ao que parece, o Brasil é local para vender produtos, fazer receita.”

Dirigentes da Danone se assustaram com as reações. A presidente do grupo para América Latina, Silvia Dávilase posicionou em Paris diante do estrago no Brasil. Negou os fatos e desqualificou a Reuters, por “falta de precisão nas informações”. E esclareceu: “Reafirmamos que não há medidas restritivas para a compra de soja brasileira na cadeia de suprimentos da Danone em todo o mundo”.O negrito está na nota.Affaireconclue?

Sobre Amazônia, o episódio mostra quanto o debate sobre desmatamento legal e ilegal é irrelevante no exterior. Pode ser soja não-GMO, orgânica, premiada por compromisso social, certificada etc. Se vier de área recém desmatada ou pior, da Amazônia, eles não comprarão. Assim pensa opinião pública, políticos e fabricantes de iogurtes europeus. Assim virão à COP 30.

Em Belém, os 30 milhões de habitantes da Amazônia não terão voz. Não há plano, num governo dito de esquerda, para desenvolver milhões de pobres nas áreas rurais da Amazônia. Há sim, para operações de guerra contra o agro. O tempora, o mores: no passado, tentativas de guerrilha rural buscaram o apoio desses mesmos pequenos agricultores, como no Araguaia. A causa social e rural dos agricultores pobres saiu da pauta da esquerda identitária.

Abandonados pelos movimentos sociais, perseguidos pelo Estado, órfãos da Nação, os agricultores da Amazônia enfrentam o eugenismo ambientalista, a ilegalização do desmatamento e de suas atividades ea mão pesada do narcotráfico. Vivem como Macunaíma,cada um por si e Deus contra todos. A defesa dos agricultores e do mundo rural da Amazônia não é prioridade governamental agora, nem será na COP 30. Nela, a soberania política da Amazônia corre risco de ser compartilhada com potencias estrangeiras, por um prato de lentilhas. Ou dois potes de iogurte.

Evaristo de Miranda é pesquisador, Doutor em Ecologia e membro da Academia Nacional de Agricultura da SNA. https://evaristodemiranda.com.br/
Artigo anteriormente publicado na Revista Oeste e gentilmente cedido pelo autor a SNA

 

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