Frederico Price Grechi

Frederico Price Grechi é advogado, árbitro, diretor jurídico da SNA, pós-doutor em Direito (UERJ) e presidente da comissão de direito agrário do IAB e da OAB/RJ. Com sólida formação acadêmica e trajetória profissional reconhecida, ele discorre, nesta entrevista, sobre os temas prementes do agronegócio brasileiro e sua relação com o ordenamento jurídico.

Além da propriedade privada no contexto rural, foram abordados assuntos como a postura brasileira diante de demandas ambientais estrangeiras; os atritos entre Congresso e STF nas decisões que afetam as cadeias produtivas; os desafios trazidos pelos novos modelos de gestão (ESG) nas empresas do ramo e de que forma entidades como a SNA podem contribuir nesse debate. Com fartas referencias doutrinárias e jurisprudenciais, Frederico lança valiosa luz sobre importantes questões. Confira a seguir:

 

SNA: O direito à propriedade privada, muito embora garantido pela Constituição Federal, sempre esteve envolto em contestações e litígios. No contexto agrário, essa insegurança jurídica se agrava, pois afeta diretamente o setor produtivo rural e fomenta conflitos entre produtores e movimentos sociais. Como o senhor enxerga essa tensão e quais erros os formuladores e aplicadores da lei cometeram para agravar esse quadro ao longo do tempo?

Frederico: O sistema jurídico brasileiro assegura tanto direitos individuais como também impõe deveres ao proprietário e ao possuidor (arrendatário) do imóvel rural no interesse da coletividade. Por exemplo, ao proprietário (e ao arrendatário) é conferido o direito à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial. Não obstante, este direito é sopesado com o dever, entre outros, de manter níveis satisfatórios de produtividade. É por isso que a Constituição de 1988 afirma que a propriedade produtiva é insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária. Na atual quadra histórica do Brasil, um país majoritariamente urbanizado, a maior parcela da população brasileira vive na zona urbana (85%), enquanto nas áreas não urbanizadas a população rural representa aproximadamente 15% do total de habitantes do país. Por isso, penso que, hodiernamente, os conflitos fundiários rurais não estão mais substancialmente relacionados à má distribuição de terras rurais que outrora justificou a política da Reforma Agrária por ocasião do advento do Estatuto da Terra (1964). As disputas fundiárias rurais podem ser classificadas em 2 categoriais: (i) aquelas legítimas, decorrentes, das falhas estruturais do sistema registral imobiliário brasileiro e da indeterminação da hermenêutica da ciência jurídica, sobretudo em casos complexos, em virtude da colisão de normas fundamentais; (ii) aquelas ilegítimas, decorrentes a violação frontal de um direito fundamental, como, por exemplo, o de propriedade. Nesse contexto, quando um movimento social (personalizado ou despersonalizado) reivindica o acesso à terra rural pública ou privada por meio dos instrumentos legais, este se enquadra na primeira categoria. No entanto, quando este mesmo movimento social pretende obter o acesso à terra rural pública ou privada por meio de invasões, violentas ou não, à margem da lei, esta disputa fundiária é flagrantemente ilegítima, impondo-se o reestabelecimento da ordem jurídica com vistas a promover a pacificação social e a segurança na sociedade.

SNA: Muitos apontam que as exigências ambientais feitas ao Brasil por outros países representam um protecionismo disfarçado de preocupação ecológica, visto que as demandas apresentadas não são proporcionais às dos produtores de fora do país. Há um caminho jurídico seguro para fazer um contraponto a essas investidas, em termos de reciprocidade, como propõe o PL 2.088/2023, atualmente em tramitação?

Frederico: No Brasil, a política ambiental federal remonta a década de 1930 e, desde então, vem evoluindo na esteira das legislações e das recomendações dos organismos internacionais. De maneira pioneira, a Constituição de 1988 dedicou um capítulo ao direito do meio ambiente ecologicamente equilibrado, enquanto bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, atribuindo ao Poder Público e à coletividade o dever de defende-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Convém ressaltar que o Brasil sediou a ECO-92, uma das maiores conferências sobre meio ambiente realizadas no mundo, ocasião em que foram assinados importantes acordos ambientais globais (Convenção do Clima e da Biodiversidade; Agenda 21, Declaração para Meio Ambiente e Desenvolvimento, Declaração de Princípios para Florestas). Como se vê, é indubitável o “caráter transnacional e transfronteiriço das causas e dos efeitos da crise ambiental da demanda dos Estados, os organismos internacionais e das instituições não governamentais, progressivamente, uma atuação mais articulada para transformar a preservação da natureza em instrumento de combate à pobreza e às desigualdades” Por outro lado, em que pese a rigorosa tendência protetiva do meio ambiente, “as políticas públicas ambientais devem conciliar-se com outros valores democraticamente eleitos pelos legisladores como o mercado de trabalho, o desenvolvimento social, o atendimento às necessidades básicas de consumo dos cidadãos etc.” (STF, ARE 1339543 AgR). No contexto do Direito Internacional do meio ambiente, a reciprocidade tem ampla aplicação, a permitir uma interação equilibrada das relações entre os Estados e a propiciar a aplicação de efeitos igualitários numa relação internacional. Bem por isso, parece-me justa e razoável a proposta do PL 2.088/2023 que acrescenta o art. 12-A à Lei nº 12.187, de 29 de dezembro de 2009, que institui a Política Nacional sobre Mudança do Clima, para tornar obrigatório o cumprimento de padrões ambientais compatíveis aos do Brasil, para a disponibilização de bens no mercado brasileiro.

SNA: Os desafios trazidos pelo tripé ESG pressionaram as empresas de vários setores a buscar orientação e amparo legal para suas atividades, de acordo com esse novo modelo de gestão. O senhor avalia que os profissionais do Direito souberam assimilar essa demanda e fidelizar os clientes que surgiram nos polos de sucesso do agronegócio brasileiro, distantes das metrópoles tradicionais?

Frederico: A governança ambiental, social e corporativa traduzida no acrônimo ESG – Environmental, Social and Governance impactou o mundo dos negócios desde que foi empregado em um relatório no ano de 2004, denominado “Quem se importa ganha”, reflete os influxos da ética e da solidariedade no direito e na economia, de tal sorte que, por um lado, os distribuidores e os consumidores demandam bens de consumo da cadeia produtiva do agronegócio alinhados com essas finalidades metaindividuais. Por outro lado, as metas do ESG são importantes referências para medição do índice de sustentabilidade e o impacto social de uma companhia, a representar um critério de escolha dos acionistas e investidores, de maneira que estes interesses metaindividuais passarão a estar refletidos na escrituração e nas demonstrações financeiras da empresa. Anote-se que a Comissão de Valores Mobiliários – CVM promoveu alterações na Instrução CVM 480, por meio da Resolução CVM 59, editada em 22/12/2021, para contemplar, entre outras providências, a previsão de normas de divulgação de informações de caráter ambiental, social e de governança (ASG). A tendência é que as boas práticas da ESG seja, num brevíssimo futuro, uma exigência para os produtores e para as empresas rurais de todos os portes, a representar uma importante oportunidade para a prestação de serviços de assessoria e consultoria pelos profissionais do Direito, o que certamente resultará em ganhos de eficiência econômica para todos os seus agentes e atendimento das necessidades socioambientais da comunidade global. A SNA, que tem, entre outras finalidades, a invocação e preservação ambiental, está formalizando um acordo de cooperação técnica com a CVM com vistas a fortalecer o ambiente de fomento e estudos das cadeias do agronegócio, no âmbito do Direito e da Economia, especialmente no que concerne ao acesso do setor ao mercado de capitais.

SNA: As polêmicas judiciais envolvendo temas relevantes para a cadeia produtiva do agronegócio que tramitam no âmbito do STF impactam, a um só tempo, o desenvolvimento econômico sustentável e a segurança jurídica para os produtores e os investidores, a ilustrar bem o descompasso entre o processo legislativo decisório das autoridades e a urgência de atualização e adaptação aos cenários reais do Brasil que, por sua vez, assumiu o compromisso de uma agenda colaborativa para a segurança alimentar mundial. O ritmo vagaroso dos gabinetes, e atuação por vezes conflitantes entre parlamentos e tribunais, contribui para a essa defasagem. Na sua opinião, quais seriam atualmente os principais temas relacionados a esse descompasso entre o legislativo e o judiciário e quais mecanismos poderiam ser adotados para corrigir esse anacronismo sem riscos às garantias constitucionais e democráticas?

Frederico: A constitucionalidade da Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/2023), aprovada pelo Congresso Nacional, que estabeleceu que os povos indígenas só têm direito ao reconhecimento e demarcação de territórios se comprovarem sua presença nas áreas em 5/10/1988, data da promulgação da Constituição Federal, teve a sua validade contestada com base no argumento de que resultaria graves limitações ao exercício dos direitos fundamentais dos povos originários, sem amparo de qualquer norma constitucional. Sobre o tema foram apresentadas Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 87, objetivando a validação da lei, e as ADIs 7582 e 7586, questionando sua validade. Outro tema que influenciará consideravelmente os investimentos estrangeiros na cadeia produtiva do agro e, por conseguinte, a economia dos mercados nacional e internacional, é a discussão da recepção ou não pela Constituição de 1988 do artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei 5.709/1971, promulgada no contexto de uma política econômica fechada, a impor restrições à aquisição de imóveis rurais por pessoas físicas e jurídicas estrangeiras e também por empresas brasileiras com capital majoritariamente estrangeiro. O tema em questão está vinculado à ADFP 342 e a ACO 2463, cabendo esclarecer que nestas ações constitucionais não está em discussão as limitações específicas relativas às áreas de fronteira que possuem uma finalidade própria na proteção da soberania nacional. A SNA poderá colaborar enquanto amicus curiae (amigo da corte), por meio da apresentação de estudos, de pesquisas e de avaliações técnicas do atual cenário sócio-econômico-ambiental, sugerindo soluções para o aperfeiçoamento e interpretação do Direito vigente, o que certamente contribuirá para redução desse anacronismo e desalinhamento entre os poderes Legislativo e Judiciário.

SNA: De que forma entidades de representação e defesa da agropecuária, como a SNA, podem contribuir ainda mais para aprimorar o ordenamento jurídico em prol da atividade rural pujante e em harmonia com os outros setores?

Frederico: A SNA também tem, entre os seus objetivos, o exame, o estudo e a colaboração para solução dos problemas de interesse da agricultura, pecuária, da agroindústria e setores correlatos. Penso que a SNA poderá contribuir com o Executivo, Legislativo e o Judiciário na formulação de propostas de soluções e elucidação de problemas rurais, ambientais, econômicos, sociais e culturais do país, com vistas à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo o pleno desenvolvimento nacional e a promoção do bem de todos, de modo a reduzir as desigualdades sociais e regionais.

Por Marcelo Sá – jornalista/editor e produtor literário (MTb 13.9290) 

 

 

 

 

 

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