Meses antes de sua nascente secar, o rio São Francisco já deixava de apresentar as condições mínimas para o transporte entre a “nova fronteira agrícola” do oeste da Bahia e o litoral nordestino. Um conjunto de fatores, que vão desde o prolongamento da estiagem na região Sudeste até a gestão dos recursos hídricos e a falta de investimento na manutenção da hidrovia, inviabilizou o transporte pelo rio neste ano. Como resultado, a única empresa que ainda realizava transporte pelo “Velho Chico” suspendeu suas atividades no rio em maio. Desde então, os produtores da região contam apenas com a malha rodoviária para escoar a safra.
Apenas uma barcaça desceu o São Francisco em 2014 entre Muquém de São Francisco e Juazeiro, carregando 2,6 mil toneladas de caroço de algodão. O volume não chega representar 0,1% do total colhido no oeste baiano na safra 2013/14, nem a 0,4% do volume de caroço que deveria ter sido transportado pelo rio este ano, estimado em janeiro em 60 mil toneladas. E o transporte se deu, literalmente, aos trancos. A viagem demorou 30 dias, dez a mais que a média, por causa do excesso de areia no curso e o consequente baixo calado em alguns trechos do rio. Após essa experiência, a Icofort, a processadora de produtos agrícolas que operava sozinha o transporte no São Francisco, jogou a toalha.
Quando a empresa iniciou as operações na hidrovia do rio São Francisco, em 2006, o atrativo era o custo 20% menor de operação em comparação com a rodovia. Para iniciar as operações, a Icofort fez um investimento de R$ 30 milhões. Porém, com a redução do volume movimentado pelo rio e a ociosidade das barcaças, a empresa calcula um prejuízo operacional de R$ 2,448 milhões por ano. “Paralisamos a operação por falta de condição. Abandonamos a hidrovia para voltar tudo ao transporte rodoviário”, afirma Décio Barreto, presidente da companhia.
A decisão implicou a demissão de 120 operadores, comandantes e funcionários da equipe de manutenção entre julho e agosto e no fechamento de armazéns em Ibotirama e Petrolina – além da desmobilização de três comboios que a empresa arrendava e que agora estão à deriva no rio.
Os problemas em realizar o transporte pelo São Francisco começaram com a demora na execução das obras de dragagem do rio. A última obra de manutenção do canal hidroviário foi feita em 2011, na região de Xique Xique (BA), onde foram retirados 50 mil metros cúbicos de areia.
Desde então, mais nenhuma obra de manutenção foi realizada. Atualmente, há trechos em que o calado está em 1,1 metro, sendo que o mínimo necessário para a navegação de barcaças com carga é 1,5 metro. “Nem os empurradores passam porque está com excesso de areia”, reclama Barreto. As obras de manutenção do canal hidroviário foram retomadas apenas em setembro deste ano. Serão dragados 21 pontos considerados críticos pela Administração Hidroviária do São Francisco (Ahsfra) entre Ibotirama e Pilão Arcado, um trecho de 320 quilômetros.
A licitação foi feita em maio pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), e a expectativa inicial é que as obras fossem terminar em novembro. Porém, o início da dragagem atrasou e a previsão, agora, é sejam concluídas em dezembro.
Nesse meio tempo, a estiagem se prolongou na região Sudeste, principalmente em Minas Gerais. Desde o início do ano até 1º de outubro, as precipitações na região da Serra da Canastra, que abriga a nascente do “Velho Chico”, somaram 300 milímetros, ante uma média histórica que varia de 750 a 1000 milímetros, segundo a Somar Meteorologia.
Como seis hidrelétricas ao longo do curso do rio, a diminuição no fluxo de água levou o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) a recomendar a redução da vazão defluente (que sai da eclusa) da usina de Três Marias, a única localizada em território mineiro. Em julho, a agência, em consenso com a Agência Nacional das Águas (ANA) e prefeituras locais, decidiu reduzir a vazão de 250 metros cúbicos por segundo para 200. Ainda foram feitas outras três reduções na quantidade de água liberada do reservatório, até chegar a 160 metros cúbicos por segundo.
Na usina de Sobradinho, já na Bahia, a vazão também foi reduzida. Desde abril do ano passado, a ANA mantém reduzida a defluência do reservatório em 1.100 metros cúbicos por segundo, ante uma vazão normal de 1.300 metros cúbicos. “Todos no Baixo São Francisco estão sendo prejudicados pela retenção de águas por parte do sistema elétrico”, diz o presidente da Icofort.
A Cemig, empresa de energia que opera a usina de Três Marias, negou que o motivo da redução da vazão tenha sido para a produção de energia. “Não há nenhuma motivação energética, uma vez que se trata de uma geração muito baixa frente à enorme demanda do país”, respondeu a empresa, em nota. De acordo com a concessionária, a recomendação da ONS foi feita “visando única e exclusivamente a manutenção de estoques mínimos de água para atender sobretudo os usos prioritários (abastecimento humano e dessedentação animal)”.
A suspensão do transporte pela hidrovia do Velho Chico tem implicação direta no bolso dos produtores. Estima-se que o frete rodoviário a partir do oeste da Bahia seja entre 18% e 40% mais caro que o hidroviário. “O frete que faríamos pela hidrovia por R$ 100 ou R$ 120, fazemos por até por R$ 140”, compara o empresário Décio Barreto.
O aumento do custo logístico colabora para incrementar a pressão sobre as margens dos produtores – que, após sucessivas safras de lucros vultosos, terão margens mais apertadas na atual temporada por causa da queda dos preços dos grãos, diz Júlio Busato, presidente da Aiba, associação que reúne os produtores do oeste do Estado. Além de onerar o escoamento da safra, o frete rodoviário mais elevado também encarece o custo para a importação de fertilizantes.
Apesar do risco de o rio virar sertão, empresas e produtores rurais não desistem do sonho de tornar o Velho Chico a principal via de escoamento agrícola da região Nordeste do país. “Não é porque em um ano teve pouca chuva que o rio não pode ser navegável”, afirma Busato.
Fonte: Valor Econômico