O modo chinês de negociar continua a intrigar os participantes da indústria frigorífica da América do Sul, região responsável por cerca de 70% das importações de carne bovina do país asiático. Ninguém duvida do gigantesco potencial de compras da China e só loucos ousariam ficar de fora do mercado. Mas a rotina comercial é desgastante, com importadores pedindo renegociação de contratos, descontos e mesmo cancelamento de compras.
Há dois meses, a alegria entre exportadores era indisfarçável graças ao fluxo positivo de embarques para a China, mas não era capaz de anular o sentimento de desconfiança entre aqueles que sofreram com o expressivo movimento de renegociação de contratos, deflagrado pelos importadores chineses entre o fim do ano passado e o início de 2020.
“Cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça”, advertira, em entrevista concedida em 14 de abril, um empresário da indústria. Poucas semanas depois, o receio se revelou premonitório.
Desde meados de maio, os importadores chineses vêm tentando emplacar descontos de até 25%. O Valor apurou que os pedidos de descontos oscilam entre US$ 500,00 e US$ 1.000,00 por tonelada. Antes da recente ofensiva dos importadores, o valor recebido pelos exportadores brasileiros estava próximo de US$ 5.000,00.
Na prática, o movimento especulativo prejudica principalmente os frigoríficos de pequeno e médio porte, que não têm gordura financeira para queimar, sendo muitas vezes forçados a vender o produto a preços pouco atraentes.
Por outro lado, indústrias de grande porte como a JBS, Marfrig e Minerva Foods têm melhores condições para resistir às pressões comerciais devido ao histórico de relacionamento com clientes chineses. A depender de quão alongada a carteira de vendas estiver, os grandes também podem se dar ao luxo de segurar as vendas até que os preços da carne se normalizem.
Mas as melhores condições não impedem que os grandes também sofram com renegociações. No balanço do quarto trimestre de 2019, a JBS reconheceu que descontos concedidos a clientes na China prejudicaram o resultado do negócio de carne bovina no Brasil. Conforme o Valor já informou, esses descontos foram de cerca de R$ 200 milhões.
Segundo Lygia Pimentel, sócia-diretora da consultoria Agrifatto, a volatilidade do mercado de carne da China reflete o momento conturbado, com os reflexos do Coronavírus que atingiu o país nos primeiros três meses do ano, ainda pesando.
A analista lembra que o primeiro impacto da doença no comércio de carnes foi o abarrotamento dos portos chineses, o que fez com que cargas tivessem de ser redirecionadas para outros portos da Ásia, como Cingapura e Vietnã.
“Quando os portos retomaram o ritmo, houve desembarque recorde de carne em março”, disse Lygia. E como a demanda dos restaurantes ainda não voltou ao patamar pré-pandemia, o estoque de carne bovina na mão dos chineses aumentou, o que ajuda a explicar o jogo duro dos importadores do país asiático nas últimas semanas.
Nesse cenário, a avaliação é que os importadores continuarão pechinchando ao menos ao longo de junho. A partir de julho, quando o consumo do estoque se acelerar e a demanda do fim do ano se impuser, os pedidos a preços mais competitivos tendem a voltar. “Os preços de hoje não fazem sentido”, argumentou um executivo.
A diretora da Agrifatto ponderou que, mesmo com os descontos pedidos, o dólar a R$ 5,00 ainda garante boa rentabilidade para os frigoríficos. Para um especialista em comércio, os pedidos de desconto dos importadores precisam ser encarados com naturalidade devido à desvalorização do real.
Por outro lado, o sistemático descumprimento de contratos abre um precedente perigoso, disseram dois executivos. “Não cumprem. É incrível”, lamentou uma fonte, frisando que, embora os importadores não obedeçam a um comando central (são empresas privadas em atuação), eles acabam agindo em bloco por causa do efeito manada.
“Os chineses são ciclotímicos”, resumiu um executivo. Nesse cenário, ganha mais (ou perde menos) aqueles que acertarem o momento de vender a carne, fugindo da euforia, quando os preços ficam muito altos e fora da realidade, e também da depressão que marca o comportamento especulativo dos importadores quando os estoques de carne estão fartos, como nas últimas semanas.
No longo prazo, argumentam as fontes, não há o que temer. Apesar das peças pregadas pelos importadores, os chineses tendem a comprar cada vez mais carne. Não à toa, o governo brasileiro enviou na semana passada uma lista com 21 frigoríficos para serem habilitados pela China, que já absorve 37% da carne bovina exportada pelo Brasil. As vendas ao país asiático mais que dobraram no primeiro quadrimestre, ultrapassando as 200.000 toneladas.
Valor Econômico