Lágrimas em Flores. Por Evaristo de Miranda*

Dia de Finados é tempo de memória, silêncio e gratidão, quando a saudade se transforma em homenagem e o amor vence a ausência. Foto: Pixabay

O orgulho produz o tirano, e quando tiver em vão acumulado excessos e imprudências, precipitar-se-á do fastígio de seu poder num abismo de males de onde não mais poderá sair. Édipo Rei   Sófocles (497 a 406 a.C.)

Dia 2 de novembro é um dos feriados mais celebrados: Finados. Não é religioso. A festa religiosa principal ocorre na véspera: Todos os Santos. No dia de Finados celebra-se a memória dos falecidos. Eles chegaram ao fim do seu tempo. É dia solene, consagrado à lembrança de antepassados, ascendentes e de todos os mortos. Nações se dedicam a relembrar. No México, a festa dos mortos é Patrimonio Imaterial da Humanidade. No agronegócio, Finados é o segundo dia do ano no comércio de flores, arranjos e vasos. Quem merece ser lembrado nesta data?

Os orientais no Brasil prestam um verdadeiro culto aos antepassados, cuja relação de dívida e gratidão é exaltada em altares domésticos. Outros não respeitam este feriado. Não lhes diz nada. Não corresponde a evento ou personagem de seu interesse. Profanam a data, esquecem seus ascendentes, seus antepassados. Perdem a memória e, sem querer, profanam a si mesmos. Tiveram pai, mãe, avós, bisavós, amigos… e imaginam-se começando em si mesmos. Os filhos do nada são sementes de caos.

Símbolos e arquétipos agrícolas ilustram este feriado, como em nenhum outro. Finar evoca o findar. Os finados foram ceifados em seu tempo. O feno é a erva ceifada. Alimenta os animais em períodos difíceis de inverno ou seca. Exemplos de vida dos ascendentes, dos colhidos, também alimentam os viventes. Eles são um feno de luz. Na Bíblia, o homem é comparado à erva do campo (Sl 103,15). Finar e fenar são semelhantes. Feno vem do grego phaíno: brilhar, aparecer. Como em epifania.

A foice, instrumento agrícola, está associada à figura da morte. O brilho reluzente dessa lâmina não apaga os finados, apenas os igualiza diante das leis da natureza. A foice simboliza os ciclos de colheita e renovação e os próprios camponeses, como no símbolo comunista (foice e martelo). Na colheita, o caule é cortado. Como cordão umbilical, ele liga o fruto à dependência da terra alimentadora. Na colheita, o grão é condenado à morte para servir de alimento, sustentar a vida ou germinar como semente. Neste novembro, na agricultura brasileira, o essencial das sementes já foi plantado, apesar das crescentes dificuldades enfrentadas pelo setor. Elas germinam e garantirão a futura safra de verão e, depois, a de inverno. Vem aí, mais uma colheita recorde, acima de 350 milhões de toneladas de grãos.

Os mortos não se apagam, quando durante a vida cortaram com a foice da consciência as ilusões do mundo e de seu próprio egoísmo. E com coragem enfrentaram os desafios de seu tempo. A foice da lua no campo das estrelas, neste Finados em particular, destaca o jornalista José Roberto Dias Guzzo, falecido em 2 de agosto de 2025. Seu exemplo o faz brilhar na lembrança de quem o admirou, lê e relê seus artigos. Eles trazem claridade, esclarecem temas, causas e valores a serem conservados.

Seus escritos brilham como estrelas. Ajudam vivos e viventes a atravessarem a noite deste período, tão desfavorável à liberdade de imprensa e expressão. Guzzo ainda elucida o futuro com a luz assertiva de sua iniciativa de criar a Revista Oeste. Como ele disse: “Todo mundo pode ter certeza: a turma da redação da Oeste seguirá fazendo o que faz…”.

Não cabe viver apagado. Cabe neste mundo fazer um trabalho de luz e enfrentar as trevas. Se a luz do falecido foi trêmula, como de uma vela, ainda assim ele iluminou. Harmonia é a tensão da luz ao vencer a escuridão. Finados é dia de acender velas. A vela é agro. Ela reúne três reinos: o animal, na cera de abelha; o vegetal, no pavio de algodão e o mineral, na resídua do fogo. Acesa em casa ou no cemitério, a vela recorda: a luz da pessoa lembrada não se apagou. A memória dos falecidos ilumina.

No Ocidente, Finados é dia de visitar cemitérios; limpar e ajeitar os túmulos; acender velas na sepultura, na igreja ou em casa; pronunciar uma oração; fazer pelo menos um instante de silêncio, meditar, relembrar e agradecer. Crianças órfãs crescem com a memória viva dos pais falecidos. Adultos, com os anos, colecionam seus mortos. Na velhice, todos se tornam órfãos. Ritualizar a lembrança dos mortos é terapêutico. Os mortos são a presença de uma ausência e não ausência de uma presença.

Os ritos profanos e sagrados dão outra perspectiva ao tempo e ao morrer. Para muitos, a ordem inteligível, sempre presente no escoar do tempo, é a do movimento perpétuo. Para quem crê, o tempo pode ser de salvação e mudança. Não se trata de viver somente a inexorável passagem do tempo (chronos), quarta dimensão do criado. Pode-se viver um tempo novo e definitivo (kairós) na fé e na defesa de valores e princípios. Uma floração.

Os floricultores usam tecnologia moderna para garantir flores nesta data solene. Além dos crisântemos, produzem grande variedade de gladíolos, girassóis, margaridas, kalanchoes, alstroemerias, orquídeas, rosas… (Rev. Oeste, Ed. 109). Em 2024, a cadeia produtiva de flores e plantas ornamentais gerou R$ 21 bilhões e 265 mil empregos. Em comparação ao agronegócio brasileiro, essa cadeia produtiva significou 0,72% do PIB e 1,24% dos empregos. O IBRAFLOR representa a cadeia de flores de corte, vasos e plantas ornamentais, presente em 16 Estados. Com cerca de 900 membros entre cooperativas e associações de produtores, o Instituto alcança mais de cinco mil floricultores em todo o país.

Graças a sofisticadas e modernas estruturas logísticas, flores e vasos são levados aos milhões aos cemitérios e adornam fotos de falecidos nas casas. Na tradição cristã, os mortos são plantados como sementes de eternidade. Regados com lágrimas, florescem no jardim da Eternidade. A flor é símbolo de ressurreição, sobretudo nos funerais. Quem leva flores ao cemitério reafirma sua fé na vida. Em Finados não se festeja a morte e sim a esperança de eternidade, em diversas visões religiosas ou não. A luz dos falecidos ainda brilha. Cada um ao nascer recebe dons especiais. Cultivados na vida, terminam por florir, perfumar e iluminar a humanidade.

Finados é sinal de esperança. De futuro e não de passado. Não evoca remorsos ou lamentações, queixas ou condenações. A simbologia agrícola de Finados, com sinais de ciclos cósmicos, vegetais e rurais, relembra a esperança, em tempos tão sombrios vivido pelo país. A humanidade pode ser um belo jardim, diverso e fraterno, perfumado e iluminado, distante das trevas e da opressão. Mesmo se nos dias de hoje, qualquer luz contra a treva é raramente perdoada, como dizia Guzzo (Rev. Oeste, Ed. 274).

Neste Finados, sobre as flores, o orvalho das lágrimas de familiares e dos prisioneiros políticos brasileiros, cuja morte civil foi decretada por inimigos da liberdade, será seiva de esperança. A Revista Oeste não vai se conformar nunca em conviver com o absurdo (…). A anistia é a única forma prática de livrar o Brasil da situação sórdida criada pelo Supremo – a de um país-escroque na violação dos direitos humanos. (…) Para você é ruim. Para eles é o paraíso na Terra. Para Oeste é um despropósito sobre o qual vamos falar pelo resto da vida, Guzzo locuta (Rev. Oeste, Ed. 260).

No hemisfério sul, Finados ocorre em plena primavera. Neste início de novembro, pare um instante para relembrar pais, avós, parentes e amigos falecidos na cascata das gerações. E buscar meios de enfrentar esse reino político, mórbido, necrófilo e liberticida, imposto aos brasileiros. Sempre é tempo de semear o bem e recomeçar. Mesmo sem qualquer o otimismo face às realidades políticas e sociais do Brasil, não cabe perder a esperança!

Neste Finados, quem você lembrará? Quem marcou sua existência para merecer um instante de silêncio, uma vela acesa, uma visita ao cemitério? Qual a utilidade do gesto inútil? Quem sabe colher o feno de luz?

*Evaristo de Miranda é ex pesquisador da Embrapa, escritor, doutor em Ecologia e membro da Academia Nacional de Agricultura da SNA. 
Artigo publicado originalmente na revista Oeste e gentilmente cedido pelo autor à SNA
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