Cana é doçura e energia em casas, veículos, navios e aviões. Por Evaristo de Miranda

Imagem: Pixabay – Schreib-Engel

O setor socroenergético é uma dos maiores e mais antigos do agronegócio

Há séculos, o Brasil é o maior produtor de cana-de-açúcar. A safraflutua ao redor de 700 milhões de toneladas, das quais 91% produzidas no Centro-Sule 9% no Norte-Nordeste. Com a criaçãodo ProAlcool (1975), parte da cana destinou-se à produção de etanol combustível. Começava a era da agroenergia (Revista Oeste, Ed. 248). E teve início a cogeração de energia elétrica, com o bagaço em caldeiras. Cominvestimento e inovação, o setor sucroenergéticopassou a produzir biogás e biometano. E não parou aí.

Agora,o setor sucroenergético dá passos para gerar uma variedade de novos produtos, pouco conhecidos. De maior valor agregado,eles estão associados a diversas indústrias: SAF, combustível sustentável de aviação (Revista Oeste, Ed. 234); Biobunker ou e-Metanol, combustível sustentável para navios (Revista Oeste, Ed. 205);Biometanolou metanol renovável, produzido através de gaseificação;Amônia Verde, produzida com biometano e nitrogênio do ar;Hidrogênio Verde (H2V);Bioplásticos ou plásticos verdes;Lignina, biopolímero presente na casca da cana de açúcar etc. Todos com demanda crescente, aqui e no exterior.

O setor sucroenergético é um dosmaiores e mais antigos do agronegócio. São 10 milhões de hectares cultivados, mais da metade no Estado de São Paulo. Essa área é quase duas vezes a da Índia (2º. produtor) e três vezes a da China (3º produtor). São cerca de 380 unidades de produção. Presente em 1200 municípios, o setor gera 730 mil empregos formais e 2,2 milhões indiretos. Além das fazendas das usinas, existem dezenas de milhares de pequenos e médios fornecedores de cana. Nesse universo heterogêneo, grandes avanços em produtividade ainda poderão ser obtidos no campo.

Mapa 1 e Mapa 2

No ciclo de 2023/2024, o setor exportou US$ 19,8 bilhões em açúcar e etanol. É a quarta maior exportação do agro, após soja, carnes e produtos florestais. O açúcar obteve US$ 18,2 bilhões, um recorde histórico. E o etanol, com 2,6 bilhões de litros exportados, cerca de US$ 1,53 bilhões. O valor bruto da cadeia sucroenergética é superior a US$ 100 bilhões e seu PIB é da ordem US$ 40 bilhões ou 2% do PIB brasileiro. Vale atualizar:

Açúcar.O Brasil é o maior produtor e exportador de açúcar. Produziu, em 2024, cerca de 46 milhões de toneladas e exportou 35,3 milhões de toneladas, um novo recorde histórico. O país representa 25% da produção global e 50% da exportação mundial de açúcar, um alimento por excelência.O mundo precisa e busca essa doçura. A produção brasileira de açúcar representa 184 trilhões de calorias (1 kg de açúcar = 4.000 calorias). Em termos energéticos, ela poderia atender a demanda calórica anual de 185 a 200 milhões de pessoas (2.500a 3.000 calorias/pessoa/dia).

Etanol de 1ª. Geração (E1G). O Brasil é o segundo maior produtor de etanol. O ranking é liderado pelos EUA. Na safra 2023/2024 produziu 35,9 bilhões de litros, dos quais 6,3 bilhões de etanol de milho. Do território nacional, 0,9% sãodestinados à produção etanol E1G.Em veículos flex, ao substituir à gasolina, o EG1reduz as emissões de CO2 em até 90%. Não há outro país com frota de 32 milhões de veículos, apta a utilizar qualquer combinação de gasolina e etanol. A mistura de 27% de etanol anidro na gasolina, reduziu as emissões em mais de 660 milhões de toneladas de CO2 de março de 2003 (lançamento dos veículos flex) até dezembro de 2023. Esse número é superior à emissão total de CO2 pela Alemanha em 2024.

Em 2024, segundo a Agência Nacional do Petróleo, o consumo de gasolina caiu 4% em relação a 2023. O de etanol cresceu 33,4% e atingiu 21,7 bilhões de litros. Só a mistura na gasolina não explica a queda no consumo. A participação do etanol no mercado de ciclo Otto (motores a combustão) atingiu 45,7% da energia consumida por veículos leves, em maio de 2024. Um aumento de 6,9 % em relação a 2023.O consumidor brasileiro recorrecada vez mais ao álcool combustível.

Bioeletricidade. Cerca de 8% da eletricidade do Brasil vem de biomassa,onde se destaca o bagaço de cana.Ela é a quarta fonte da matriz elétrica nacional e representa 34% da energia renovável ofertada internamente. A geração anual de eletricidade pela cana alcançou 21 TWh (2023). Apesar de equivaler a quase 25% da geração da Usina Itaipu ou à demanda de 11 milhões de residências,é apenas15%deseu potencial de energia elétrica. A geração poderia ser 151 TWh (7 vezes mais) ou30% do consumo no Sistema Integrado Nacional. A bioeletricidade evitou a emissão de 4,3 milhões de toneladas de CO2 em 2023. Para a mesma economia de CO2 seria preciso plantar 5 bilhões de árvores nativas, crescendopor 20 anos.

São muitas as vantagens da bioeletricidadeda cana: é gerada próxima aos centros consumidores de energia elétrica; reduz perdas do sistema em longas transmissões; diminui a necessidade de investimentos em transmissão; é uma geração não intermitente e complementar à hídrica, no momento mais reduzido nas vazões dos rios, de abril a novembro (período seco);reduz o acionamentodas termoelétricas, com base em combustíveis fósseis. Além de alimentar usinas e instalações, a energia excedente vaià rede elétrica e pode ser comercializada no mercado livre de energia.Com a Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), se o Governo não atrapalhar com sua sanha arrecadatória e regulatória antimercado, a bioeletricidade tem potencial para crescer mais de 55% até 2030.

Etanol de Segunda Geração (E2G). Esse biocombustível avançado, utiliza enzimas selecionadas para extrair açúcares presentes na celulose e hemicelulose do bagaço e da palha. Ao contrário do etanol E1G, produzido do caldo da cana, o E2G aproveita os resíduos da produção de açúcar e torna processo mais sustentável. Esse reaproveitamento aumenta em até 50% a produção, sem crescimento de área plantada. O E2G tem 30% menos de emissões de CO2, comparado ao E1G. A Raízené única empresa a produzir E2G em escala comercial.

Biogás e Biometano. O biogás resulta da fermentação por bactérias dos resíduos da produção: vinhaça e torta de filtro. O biogás é uma mistura de gases, sobretudo metano e dióxido de carbono. O biometano é o biogás purificado, com a remoção do dióxido de carbono e impurezas. Tem composição em metano mais elevada e maior qualidade, análogo ao gás natural. Substitui o diesel em veículos pesados (caminhões, ônibus e tratores) e emite 90% menos CO2. Empresas investem na construção de caminhões a biometano. A Associação Brasileira do Biogás (ABiogás), com 165 empresasassociadas, defende o biometano em frotas de caminhões pesados para descarbonizar o transporte. A previsão da ABiogás, até 2032, é de 194 plantas industriais, produzindo 7,9 milhões de Nm3/d. Para 2025, prevê-se produzir 3 milhões de Nm3/d.

SAF.A aviação internacional contribui com 3% das emissões totais de CO2 no planeta, segundo a Agência Internacional de Energias Renováveis (IRENA). Uma contribuição superior à do Brasil como país.O setor aéreoé o meio de transporte com maior crescimento no mundo. Esse valordeve dobrar até 2050. AInternational AirTransport Association(IATA)definiu o objetivo de zerar as emissões de carbono do setor aéreo até 2050, o Fly Net Zero. Boa parte da descarbonização serápelo SAF,única alternativa viável para voos longos, os mais poluentes: 6,2% deles geram 52% das emissões.

Em seu ciclo de vida, o SAF reduzem até 80% as emissões de CO2 do setor aéreo e é compatível com os motores atuais. Aqui, as companhias jáassumiram compromissos emusar SAF e se tornarem Fly Net Zero: LATAM em 2050, Azul em 2045 e Embraer em 2040.O etanol de cana é uma das matériaspara a produção de SAF. A extração de hidrogênio renovável, obtida a partir do etanol, facilita muito a produção em escala comercial do SAF. A Raízen foi a primeira produtora de etanol a receber certificação Carbon Offsetting and Reduction Scheme for International Aviation (ISCC CORSIA Plus), ao cumprir os requisitos internacionais para produzir SAF, inclusive em parceria com HongKong.

Saideira. Não se pode esquecer a cachaça, dentre os produtos tradicionais,sempre novos e evoluindo da cana de açúcar.É a denominação legal de uma aguardente produzida apenas no Brasil.A matéria-prima exclusiva da cachaça é o mosto fermentado do caldo da cana e outros subprodutos do açúcar.Em 2023, o Brasil exportoucerca de 10 milhões de litros, mais de US$ 20 milhões, para quase 100 países, através de uma centena de empresas e cooperativas exportadoras (Revista Oeste, Edição 219).

O setor da cana de açúcar,principal pilar da energia renovável, da descarbonização e da transição energética, seguirá líder na produção de alimentos, bioeletricidade, biocombustíveis e materiais recicláveis.É uma das cadeias produtivas do agro mais ampla, diversificada e industrializada. O Brasilconstruiu uma usina solar sustentável de 10 milhões de hectares. E tem quatro séculos de experiência em seu manejo. Ainda dá para confiar no futuro. Malgré tout et malgré eux. (Apesar de tudo e deles).

Evaristo de Miranda é pesquisador, doutor em Ecologia e membro da Academia Nacional de Agricultura da SNA – https://evaristodemiranda.com.br/
Artigo publicado anteriormente na revista Oeste e gentilmente cedido à SNA pelo autor.

 

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