BELÉM E A VIAGEM PHILOSOPHICA. Por Evaristo de Miranda

Foto: Divulgação Prefeitura Belém do Pará

Por três séculos, Belém foi o coração da ciência na Amazônia e da botânica no Brasil. Não é mais. Belém, com seu glorioso e ignorado passado, será sede da COP 30

Virtud es conocer esas yerbas,                                                                                                                                según yo me voy imaginando,                                                                                                                                algún dia será menester                                                                                                                                            usar de ese conocimiento.

Don Quijote de la Mancha (I,10)                                                                                                                                               Miguel de Cervantes

As águas do oceano mudaram de cor. Deixaram o azul celeste colado aos céus. Cobriram-se de um manto marrom. O veleiro Águia Real e Coração de Jesus, com seu grande porão abarrotado de volumes, navegava lentamente nesse mar de águas doces. Na ponta da proa, o cientista baiano Alexandre Rodrigues Ferreira aguardava impaciente algum sinal da cidade de Belém. Os ventos não eram favoráveis. O Brasil e o Grão Pará estavam próximos. As águas do Amazonas invadindo o Atlântico por centenas de léguas eram a maior certeza. Logo, a silhueta do Forte do Presépio e a de Belém, iluminadas pelo sol equatorial, emergiram no horizonte. Alívio.

Ele saíra de Lisboa no primeiro de setembro do ano da graça de 1783 e estava há 50 dias no mar oceano. Há 15 anos, deixara a Bahia para estudar em Portugal. Obtivera o doutorado na Faculdade de Filosofia Natural, em 1779. Solteiro, com 27 anos, agora sua missão era explorar a Amazônia numa expedição científica, quase 150 anos após a saga de Pedro Teixeira (Revista Oeste, Ed. 257 e 259). Trazia muitos livros, um mapa completo do rio Amazonas e 17 volumes com 424 itens de equipamentos.

Influenciaram em sua formação, Domingos Vandelli e Giovanni Dalla Bella, botânicos e professores de ciências naturais da Universidade de Coimbra. Vandelli fundara o Museu de História Natural e o Jardim Botânico da Ajuda em 1768, dedicados a plantas úteis à medicina e à economia. Sobre o sentido prático da botânica, ele afirmou: A mim nenhum obséquio faz à filosofia, quem a estuda por deleitável (…) o grau de aplicação que merece uma ciência mede-se pela sua utilidade.

Com ciências úteis e aplicadas, Alexandre R. Ferreira executou sua ViagemPhilosophica. A expedição científica foi promovida pelo ministro da Marinha e dos Negócios Ultramarinos, Martinho de Melo e Castro, patrono das ciências e grande interessado nos reinos de além-mar. Expedições filosóficas lusitanas ocorreram no século XVIII, através de viagens científicas ao Brasil, Angola, Moçambique, Goa e Cabo Verde, Cabo da Boa Esperança, Melinde e Calicute. Em Belém, sua primeira impressão, enviadaao Ministro, foi: A terra em si, Senhor Excelentíssimo, é um paraíso; aqui mesmo são tantas as produções que eu não sei a que lado me volte.

Era um paraíso inculto. Por mais de três séculos, os portugueses introduziram muitas espécies vegetais no Brasil: cana de açúcar, algodão, manga, bananas, carambola, melão, melancia, arroz, feijão, trigo, aveia, sorgo, uva, coco, figo, fruta-pão, jaca, laranjas, limão, limas, tangerinas, tamarindo, café, cravo, canela, pimenta do reino, chá, biribá, gengibre, romã, inhame, amoras, nozes, morangos, maçãs, peras, pêssegos, sapotis, pinhas, graviolas…, além de hortaliças, temperos, ervas medicinais e tubérculos.

Do século XV ao XVII, a Coroa transformou suas ilhas atlânticas, da Madeira, do Cabo Verde e São Tomé, em hortos botânicos práticos, campos de aclimatação, multiplicação e disseminação transcontinental de plantas. O sucesso agronômico e agrícola não veio por acaso. Resultou de empenho consciente, técnicas, experimentos, avaliações e comparações de resultados. Espécies adaptadas eram muito cultivadas no Brasil em 1585, como atesta o Tratado Descritivo do Brasil de Gabriel Soares de Souza, em 250 capítulos.

A floresta amazônica foi objeto de uma exploração mais tardia, por diversas razões. Aproveitando a União das Coroas espanhola e portuguesa, os portugueses engajaram-se na Amazônia. Tomaram posse de grande parte da bacia, em cuja embocadura haviam consolidado seu controle. Em1637, Pedro Teixeira em uma expedição de 47 canoas e duas mil pessoas, explorou e mapeou a bacia do Amazonas até Quito, onde em janeiro de 1639, concluiu sua Relação do Rio das Amazonas. Regressou a Belém, apósmais de dois anos de viagem, com mapas, conhecimentos e informações inéditas sobre a vegetação amazônica, entre outras, do uso do látex da seringueira.

Nas décadas seguintes à saga de Pedro Teixeira, com a restauração do Trono português, separado da Espanha, a Coroa regulou a divisão da Amazônia entre as ordens religiosas por meio de cartas régias (1687-1714). Grupos de missionários espalharam missões por milhares de quilômetros pelo vale amazônico. Carmelitas, jesuítas, franciscanos e mercedários iniciaram as atividades extrativas das drogas do sertão com exportação regular de pau-cravo, cacau, castanha, copaíba, resinas aromáticas e plantas medicinais.A expedição científica de Alexandre R. Ferreira, a partir de Belém, ajudaria a descobrir e nomear plantas, animais, minerais e a cultivar o Éden amazônico.

Em 1727, o governador da Guiana francesa Claude d’Orvilliers arrancou um marco com o escudo português plantado na fronteira. O sargento-mor Francisco de Melo Palheta foi mandado à Guiana, com duas missões: fazer respeitar a divisa, situada no rio Oiapoque pelo Tratado de Utrecht (1713)e obter mudas de café, ali cultivado desde 1719, apesar da proibição formal do governo francês. Cumpriu as duas. Em 1742, enviou-se de Belém a primeira amostra de café para Portugal. Em 1748 havia 17 mil pés de café no Pará.

Em 1750, o Tratado de Madri, firmado entre D. João V de Portugal e D. Fernando VI de Espanha, definiu os limites entre seus respectivos domínios e legitimou a posse portuguesa da bacia amazônica em direção ao Pacífico, respeitando os marcos deixados por Pedro Teixeira há mais de um século.

Para aplicar o Tratado, em setembro de 1751, chegou a Belém o irmão do marquês de Pombal, Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Ele redesenhou a Amazônia brasileira. Fundou a Companhia Geral de Comércio do Grão Pará e Maranhão e proclamou o Diretório dos Índios. Os jesuítas foram expulsos. Atividades econômicas caíram sob o controle do Estado. Houve decadência na produção de drogas do sertão e perda de conhecimentos acumulados sobre as plantas por jesuítas, como relatou o padre João Daniel (1722-1776), autor de obra enciclopédica, a “bíblia ecológica” da Amazônia.

Esse era o tempo de Alexandre R. Ferreira. As fronteiras foram demarcadas. A reforma urbana favoreceu o renascimento de povoados e vilas da região. A Coroa contratou e transferiu para a Amazônia, na segunda metade do século XVIII, dezenas de técnicos especializados. Dentre esses pioneiros da ciência moderna estava o arquiteto e naturalista bolonhês Antônio José Landi. Chegou a Belém em 1753, elaborou uma História Natural do Grão-Pará e manteve um horto botânico no engenho Murutucu. Deixou sua marca na cidade. Landi aguardou a chegada do naturalista Alexandre R. Ferreira, pronto para colaborar com sua Viagem Philosophica.

Graças aos conhecimentos acumulados e ao apoio das autoridades, entre 1783 e 1791, Alexandre R. Ferreira realizou coletas geológicas, botânicas, zoológicas e etnográficas por toda Amazônia, até o Mato Grosso. Navegou e caminhou milhares de quilômetros. Foram dezenas de memórias, diários, mapas, tratados, centenas de ilustrações e milhares de amostras de flora e fauna enviadas ao Museu de História Natural da Ajuda em Lisboa.

Após chegar a Lisboa, em 1794, Ferreira foi encarregado do Real Gabinete de História Natural e do Jardim Botânico. Enquanto organizava os dados e o material coletado, defendeu junto à D. Maria I, a criação de jardins botânicos, com objetivos agrícolas, científicos e econômicos, a começar por Belém.

Em 4 de novembro de 1796, uma Carta Régia da rainha, ordenou implantar um jardim botânico em Belém do Pará. O Governador executou a ordem real, escolheu local e funcionários para organizar o jardim. O Jardim Botânico do Grão Pará foi criado com a denominação de Horto Público de São José.

Em 1798, carta do Conde de Linhares ordenou instalar viveiros de plantas semelhantes em Olinda, Salvador, São Paulo, Goiás, Vila Rica e São Luís. O Jardim Botânico de Belém serviu de modelo a essa implantação. Um catálogo das plantas do Jardim de Belém foi enviado ao Governador da Bahia em 1798 para criar em Salvador um jardim semelhante. D. Maria I ao Governador do Pará retrata esse objetivo: Ordena Sua Alteza Real, que V. S. deixe disposto o modo porque se hão de ir sempre aumentando particularmente espécies preciosas (…) e como desses viveiros se hão de ir distribuindo para as outras Capitanias, V. S. deve oferecê-las aos seus respectivos Governadores logo que as tenha em maior abundância.

A saúde de Alexandre R. Ferreira declinou com a invasão bárbara de Portugal por tropas napoleônicas. O naturalista francês Geoffroy Saint-Hilaire solicitou a rapinagem das coleções da Viagem Philosophica ao marechal Junot.Ele realizou o saque para o Museu de História Natural de Paris. Alexandre R. Ferreira assistiu à brutal pilhagem de 76 mamíferos (pelo menos 15 primatas coletados por ele), 387 aves, 32 répteis, 100 peixes, 508 insetos, 12 crustáceos, 468 conchas, 59 minerais e 10 fósseis, num total de 1.622 exemplares. Os seus herbários e os do frei José Velloso, com 1.114 plantas, e mais oito herbários também foram saqueados. Haja Iluminismo!

Com a Família Real no Brasil em 1808, a rede de jardins botânicos ganhou força, incluindo a criação do Real Horto do Rio de Janeiro. Tudo de acordo com o modelo de Belém, recebendo de lá plantas para cultivo e aclimação. Em 1809, com a tomada de Caiena pelas tropas joaninas, Portugal ganhou a posse do jardim de aclimação La Gabrielle. Trouxe de lá variedades como a cana caiana ou caiena. O primeiro envio ao Horto de Belém foi de 82 espécies, em 6 caixas. Magro consolo diante do saque do Museu da Ajuda.

De Pedro Teixeira a Alexandre Rodrigues, passando por Emilio Goeldi, contratado pelo Museu Imperial em 1884, poucos conhecem essa história de Belém e da Amazônia. Com a República, o Museu Imperial foi transformado em Museu Nacional. Sua reforma republicana incluiu a exigência de “ponto”aos naturalistas. Goeldi, Orvile Derby,Fritz Müller, Hermann von Ihering,Wilhelm Schwacke e Carl Schreiner se desligaram. O museu e seu acervo imperial foram republicanamente reduzidos a cinzas em 2018.

Jardins de plantas encantam desde o mítico jardim do Éden, passando pelos jardins suspensos da Babilônia, por jardins romanos, árabes e pelos passeios públicos. Os jardins e hortos botânicos surgiram na Europa e no Brasil com plantas terapêuticas, junto às faculdades de medicina, e depois com plantas de interesse comercial e econômico, cumprindo funções de aclimatação de espécies entre hemisférios e continentes para desenvolver a agricultura.

Por três séculos, Belém foi o coração da ciência na Amazônia e da botânica no Brasil. Não é mais. Belém, com seu glorioso e ignorado passado, será sede da COP 30. Em matéria de meio ambiente e ciência, o evento trará à luz o pioneirismo da Viagem Philosophica? Alguma “autoridade” ou participante brasileiros e preocupa com isso, além de autopromoção?

A Viagem Philosophica antecedeu de muito as expedições de ingleses, alemães, franceses e russos pela Amazônia. A partir de Alexandre R. Ferreira, os jardins botânicos brasileiros serviram ao desenvolvimento da botânica e da agricultura. Se a botânica moderna se iniciou com o sueco Karl von Linneu, a botânica científica brasileira foi iniciada pelo naturalista baiano Alexandre R. Ferreira. Teve como marco a Viagem Philosophica e como berço Belém, essa da COP 30.

Evaristo de Miranda é ex-pesquisador da Embrapa, escritor, doutor em Ecologia e membro da Academia Nacional de Agricultura da SNA.
Artigo publicado originalmente na Revista Oeste e gentilmente cedido pelo autor à SNA
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