Mulheres de força e coragem querem mais espaço no campo

Pecuarista Lúcia Boussès abandonou a vida de executiva em São Paulo para trabalhar no campo, em Santa Catarina. Foto: Arquivo pessoal

Depois de ocupar vários cargos executivos em empresas multinacionais de São Paulo, o amor pela terra fez com que a pecuarista Lúcia Mabel Saavdra Boussès voltasse, há 13 anos, às suas raízes familiares. No Dia Internacional da Mulher, comemorado em oito de março, ela foi escolhida pela equipe SNA/RJ para contar sua história, representando todas as mulheres que vivem e trabalham no campo.

Filha de produtores rurais e criada em um ambiente modesto, depois de alcançar uma carreira de sucesso no meio corporativo, Lúcia decidiu retornar ao seu Estado de origem, Santa Catarina, fato que transformou sua vida.

“Meu capital social me liga ao campo. Sou filha de agricultores, morei e trabalhei com meus pais até concluir os estudos universitários. Minha opção de voltar a morar no campo é por paixão pela terra, pela agricultura e pelos animais”, conta.

Lúcia integra uma parte das trabalhadoras rurais que, hoje, lideram o agronegócio no país, com ou sem a presença dos homens. Números do último censo (2010) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que as mulheres do campo são responsáveis por quase metade da renda das famílias (42,4%), porcentagem superior ao das que moram nas cidades (40,7%).

Ainda segundo o IBGE, no ano 2000, as mulheres chefiavam 24,9% dos 44,8 milhões de domicílios particulares. Em 2010, o salto foi de 38,7% das 57,3 milhões de residências. Se fosse realizado um novo censo, com certeza, estes dados seriam bem superiores.

 

MULTITAREFAS

O trabalho no campo é penoso e por isso mesmo é que Lúcia acredita na importância do papel da mulher no meio rural, principalmente por executar multitarefas.

“Sem a mulher, a propriedade rural não se sustenta, porque ela é o pilar da casa, elemento polivalente que cuida do lar, dos filhos, dos idosos, dos doentes. Ainda trabalha ao lado do homem, em todas as atividades: tira leite, planta, colhe, dirige trator, colheitadeira e assim por diante”, relata.

Considerando sua experiência, a produtora rural garante que “a propriedade deixa de existir, quando a mulher decide ir embora”. “O homem não fica sozinho no campo, porque a vida aqui é muito dura e a mulher é o elemento neutralizador de todas as adversidades. Somos grandes guerreiras.”

Na sua bagagem de vida, Lúcia ainda contabiliza um importante feito: foi a primeira mulher a assumir o cargo de presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Santa Catarina, um fato inédito até sua eleição. “Depois disso, abrimos precedentes e chegamos a ter quatro mulheres presidindo sindicatos rurais em SC.”

Assim que chegou à cidadezinha onde mora até hoje – Campo Alegre, no Planalto Norte catarinense –, foi convidada a participar da renovação do sindicato dos produtores rurais do município. “Isso foi lá pelos idos de 2003. Logo fui eleita presidente da entidade, que presido com mandatos renovados até 2019.”

No pequeno município, a economia gira em torno, basicamente, da agricultura familiar, de pequenas propriedades. Lúcia trabalha na pecuária de corte, com um pequeno rebanho da raça Simangus, oriunda do cruzamento industrial das raças Simental e Angus, que visam à obtenção de terneiros precoces de elevada conversão de peso.

Em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural de Santa Catarina (Senar-SC), ela também mantém, em sua propriedade, um Centro de Capacitação em Inseminação Artificial para Bovinos, que atende a todos os municípios do Planalto Norte de seu Estado.

 

CARGOS DE LIDERANÇA

Para melhorar o papel da mulher no campo, Lúcia acredita na inserção delas em postos de lideranças de grupos, entidades, associações e cooperativas. “Mas é necessário que a própria mulher queira ocupar esse espaço. Hoje, ela ainda é muito cobrada pelos papéis que a sociedade lhe atribuiu: família, casa, filhos, marido e nada de realização profissional. Temos belas líderes adormecidas. É uma pena que tantos talentos passem em brancas nuvens, sendo que há tanto a ser feito.”

Na opinião dela, considerando as oportunidades certas, qualquer mulher consegue gerir uma propriedade rural com competência: “Diferentemente dos homens, as mulheres são mais versáteis. Podemos não ter a força física do sexo masculino, mas temos a habilidade de executar várias tarefas ao mesmo tempo. E isso é uma questão fisiológica, nada contra os homens. Nós conseguimos planejar melhor nossas atividades, pois somos mais organizadas”.

 

PRECONCEITO

Mesmo diante de todas as dificuldades cotidianas na hora de lidar com o trabalho no campo e por ser uma mulher privilegiada, principalmente porque teve condições de estudar e batalhar por melhores condições de vida, Lúcia não investe na ideia do preconceito contra a mulher.

“O futuro que queremos, somos nós que fazemos. Não sou feminista, apenas acredito na força da mulher, na sua competência, sem revanchismos contra uma sociedade machista. Basta ser competente que o resultado aparece”.

Para Lúcia, as mulheres precisam acreditar mais na sua força: “Somos, sim, formadoras de opinião, afinal, somos nós que decidimos que carro a família vai comprar, que produtos a família vai consumir”.

Como sindicalista, ela ressalta que as mulheres são naturalmente mais empreendedoras, trabalham muito e ainda encontram tempo para fazer quitutes ou artesanatos para vender e ajudar a aumentar a renda da família. “O que precisamos, de verdade, é melhorar bastante a autoestima dessas líderes adormecidas.”

 

Programa “Com Licença Vou à Luta”, elaborado pelo Senar, é voltado especificamente para a mulher produtora rural. Foto: Divulgação Senar

COM LICENÇA EU VOU À LUTA

Para ajudar tantas “amigas”, Lúcia destaca o programa “Com Licença Vou à Luta”, elaborado pelo Senar especificamente para a mulher produtora rural. “Trata-se de uma ferramenta perfeita para o aprimoramento das nossas adoráveis agricultoras.”

De acordo com ela, as agricultoras que completam o treinamento, “saem diferentes, uma nova mulher agricultora, adquire conhecimentos de empreendedorismo, gestão, planejamento, legislação e liderança. São novas mulheres, que reconhecem a mudança”.

 

DESIGUALDADES

A história de Lúcia Boussès, certamente, é mais incomum entre as agricultoras brasileiras, para não dizer “privilegiada”, embora seja inegável que ela sirva de incentivo para que outras mulheres continuem lutando por seus direitos e por mais espaço no trabalho, sejam eles no meio rural ou urbano. E é exatamente isso que ela vem fazendo como presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Campo Alegre (SC).

Mesmo assim, Lúcia teve a oportunidade de poder estudar, considerando que foi educada em torno de uma boa estrutura familiar, enquanto outras não tiveram ou ainda não têm a mesma chance. E os dados nacionais mais recentes corroboram com essa discrepância.

Em 2011, segundo o relatório “Síntese de Indicadores Sociais – Uma análise das condições de vida da população brasileira 2012”, também do IBGE, a taxa de analfabetismo no campo era de 21,2%. Isso significava o dobro da média nacional, já que nas áreas urbanas o índice era de 6,5%.

 

Taxa de analfabetismo no campo era de 21,2%, em 2011, o dobro da média nacional, considerando que nas áreas urbanas o índice era de 6,5%, conforme o IBGE. Foto: Divulgação Fotos Públicas

Durante uma campanha no ano seguinte, ao escolher o tema “Empoderamento das Mulheres Rurais – Erradiquemos a Pobreza e a Fome”, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou que a maioria delas, que vive no campo, é trabalhadora familiar não remunerada e está frequentemente exposta a trabalhos precários. Quando recebe algum dinheiro, embolsa quase 25% menos que os homens, embora trabalhe mais horas, principalmente porque acumula os trabalhos domésticos e familiares.

Nas cidades, essa porcentagem também não é muito diferente, confirmando que, apesar de viverem realidades de trabalho bem diferentes, as mulheres continuam recebendo menos que os homens, no Brasil, embora exerçam as mesmas atividades.

 

ALERTA DA OIT

Naquela ocasião, o relatório da OIT alertou que “essas mulheres e meninas, empresárias, trabalhadoras agrícolas, autônomas e responsáveis por empresas familiares – que representam uma de cada quatro pessoas no mundo – são as mesmas responsáveis por toda a carga do trabalho doméstico e pelo cuidado com os filhos”.

 

Relatório da OIT alerta que “essas mulheres e meninas, empresárias, trabalhadoras agrícolas, autônomas e responsáveis por empresas familiares – que representam uma de cada quatro pessoas no mundo – são as mesmas responsáveis por toda a carga do trabalho doméstico e pelo cuidado com os filhos”. Foto: Divulgação

“Apesar disso, elas enfrentam algumas das piores desigualdades no acesso aos serviços sociais, à terra e a outros bens produtivos. Isso priva a elas e ao mundo de alcançar seu pleno potencial (…). Não se poderá encontrar nenhuma solução duradoura às principais mudanças atuais – das mudanças climáticas à instabilidade política e econômica – sem o empoderamento pleno e sem a participação das mulheres do mundo”, ressaltou Bachelet Directora, diretora-executiva da ONU Mulheres (Organização das Nações Unidas), em mensagem sobre o oito de março daquele ano (2012).

 

Por equipe SNA/RJ

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